O cérebro dos músicos responde de forma diferente à dor. O treino parece ter criado uma espécie de proteção contra os efeitos negativos habituais, tanto na intensidade da dor sentida como na reação das áreas motoras do cérebro.
É bem sabido que aprender a tocar um instrumento oferece benefícios que vão muito além da simples capacidade musical.
De facto, estudos científicos já demonstraram que é uma excelente atividade para o cérebro: pode melhorar a nossa destreza motora fina, a aquisição de linguagem, a fala e a memória, e até ajudar a manter o cérebro mais jovem.
Após anos a trabalhar com músicos e a observar como persistem no treino musical, apesar da dor causada por milhares de movimentos repetitivos, a neurocientista Anna M. Zamorano, começou a questionar-se: se o treino musical pode remodelar o cérebro de tantas formas, será que também pode alterar a forma como os músicos sentem dor?
Esta foi a pergunta que Zamorano, professora na Universidade de Aarhus, na Dinamarca, e os colegas, se propuseram a responder num novo estudo, cujos resultados foram recentemente publicados na revista Pain.
Os cientistas já sabem que a dor ativa várias reações no corpo e no cérebro, alterando a nossa atenção e pensamentos, bem como a forma como nos movemos e comportamos. Se tocar numa frigideira quente, por exemplo, a dor faz com que retire a mão antes de sofrer queimaduras graves.
A dor também altera a atividade cerebral. De facto, geralmente reduz a atividade no córtex motor, a área do cérebro responsável pelo controlo dos músculos, ajudando a evitar a sobrecarga de uma parte do corpo lesionada, explica Zamorano num artigo no jornal dinamarquês Videnskab.
Estas reações ajudam a prevenir danos adicionais quando estamos feridos. Neste sentido, a dor funciona como um sinal protetor que nos beneficia a curto prazo. Mas, se a dor persistir por mais tempo e o cérebro continuar a enviar estes sinais de “não mexer” durante demasiado tempo, as coisas podem correr mal.
Por exemplo, se torcermos o tornozelo e deixarmos de o usar durante semanas, isso pode reduzir a mobilidade e perturbar a atividade cerebral nas regiões relacionadas com o controlo da dor. E, a longo prazo, isto pode aumentar o sofrimento e a intensidade da dor.
Investigações anteriores também revelaram que a dor persistente pode encolher o que é conhecido como o “mapa corporal” do cérebro – a área onde o cérebro envia comandos sobre quais músculos mover e quando – e esta redução está associada a níveis de dor mais elevados.
No entanto, embora seja claro que algumas pessoas sintam mais dor quando os seus mapas cerebrais se reduzem, nem todos são afetados da mesma forma. Algumas pessoas conseguem lidar melhor com a dor, e os seus cérebros são menos sensíveis a ela. Os cientistas ainda não compreendem totalmente porquê.
Músicos e dor
No seu estudo, Zamorano e os colegas quis investigar se o treino musical e todas as alterações cerebrais que provoca poderiam influenciar a forma como os músicos sentem e lidam com a dor.
Para tal, induziram deliberadamente dor na mão durante vários dias em músicos e não músicos, para ver se existia alguma diferença na forma como respondiam.
Para simular de forma segura a dor muscular, a equipa usaou um composto chamado fator de crescimento nervoso, uma proteína que normalmente mantém os nervos saudáveis, mas quando injetada nos músculos da mão provoca dor durante vários dias, especialmente ao movimentar a mão. No entanto, é seguro, temporário e não causa danos.
De seguida, usaram uma técnica chamada estimulação magnética transcraniana (EMT) para medir a atividade cerebral. A EMT envia pequenos impulsos magnéticos para o cérebro, e usamos estes sinais para criar um mapa de como o cérebro controla a mão, feito para cada participante do estudo.
Os investigadores construíram estes mapas antes da injeção de dor e voltaram a medi-los dois dias depois e oito dias depois, para ver se a dor alterava o funcionamento cerebral.
Uma diferença impressionante
Ao comparar os cérebros de músicos e não músicos, as diferenças foram impressionantes. Mesmo antes de induzir a dor, os músicos apresentavam um mapa da mão mais refinado no cérebro, e quanto mais horas tinham passado a praticar, mais apurado esse mapa se mostrava.
Após a indução da dor, os músicos relataram sentir menos desconforto em geral. E enquanto o mapa da mão no cérebro dos não músicos encolhia após apenas dois dias de dor, os mapas nos cérebros dos músicos mantiveram-se inalterados. Surpreendentemente, quanto mais horas tinham treinado, menos dor sentiam.
Este foi um estudo pequeno, com apenas 40 participantes, mas os resultados mostraram claramente que o cérebro dos músicos responde de forma diferente à dor.
O treino parece ter criado uma espécie de proteção contra os efeitos negativos habituais, tanto na intensidade da dor sentida como na reação das áreas motoras do cérebro.
Claro que isto não significa que a música seja uma cura para a dor crónica. Mas demonstra que o treino e a experiência a longo prazo podem moldar a forma como percebemos a dor.