Primeira a crescer com amplo acesso a salgadinhos, barras de chocolate, cereais açucarados, refrigerantes e outros ultraprocessados, a geração X tornou-se dependente desse tipo de produto. A conclusão é de um estudo que avaliou os hábitos de 2 mil norte-americanos entre 50 e 60 anos, que passaram a infância e a adolescência sob o forte marketing da indústria. Segundo os pesquisadores, a taxa de nascidos entre 1960 e 1979 que atendem aos critérios de adição é muito maior do que a dos baby boomers, hoje com 65 a 80 anos. O fenômeno coincide com a transição de um padrão alimentar baseado em ingredientes in natura para uma explosão de comida pronta. 

Para avaliar sinais de dependência entre os entrevistados, os pesquisadores usaram uma escala desenvolvida pela Universidade de Yale, a mYFAS 2.0, a partir dos critérios usados no diagnóstico de adição em drogas e álcool. A ferramenta inclui 13 indicadores comportamentais e emocionais, entre eles, o desejo intenso por determinados alimentos, tentativas frustradas de reduzir o consumo, persistência mesmo diante de consequências negativas, sintomas de abstinência ao tentar cortar, negligência de atividades sociais e uso de comida como forma de lidar com estresse e emoções difíceis.

Os resultados, publicados nesta segunda-feira (29/9) na revista Adiction, revelaram que 21% das mulheres e 10% dos homens da geração X encaixam-se no padrão de dependência. Entre pessoas de 65 a 80 anos, as taxas foram menores: 12% e 4%, respectivamente. A diferença de gênero também chamou a atenção dos pesquisadores. Diferentemente do que se observa em adições químicas tradicionais, o comportamento de vício relacionado aos ultraprocessados é mais prevalente no sexo feminino. Segundo o estudo, o dado pode estar ligado a fatores sociais e psicológicos, como pressões estéticas, dietas restritivas, estigmas em torno do corpo e vulnerabilidades emocionais.

Transformações

“A geração X passou por grandes transformações ao longo da vida, a fase pós-guerra, o impacto da exposição à TV e à tecnologia nas escolhas e hábitos de consumo. É uma geração que viveu muito estresse crônico, ansiedade e sobrecarga de responsabilidades”, comenta Rejane Sbrissa, psicóloga cognitivo-comportamental especialista em transtornos alimentares. “As mulheres são mais cobradas socialmente na aparência física, pesquisas mostram que somente 3% delas aceitam o próprio corpo. Já os homens não tinham de se preocupar com isso”, destaca. A especialista lembra que as oscilações hormonais também afetam o emocional e, consequentemente, a alimentação. 

Outra descoberta da equipe de Michigan é sobre a percepção do próprio peso corporal. Mulheres que se achavam acima do considerado ideal tinham 11 vezes mais chance de se enquadrar nos critérios de vício alimentar em comparação com aquelas que acreditavam estar dentro do adequado. Nos homens, a diferença foi mais acentuada: entre os que se consideravam com sobrepeso/obesidade, a probabilidade de exibir sinais de dependência era 19 vezes maior. Para os autores, o dado indica que a relação entre alimentação compulsiva e insatisfação com a autoimagem é estreita, e que tentativas repetidas e malsucedidas de emagrecer podem perpetuar um ciclo de consumo descontrolado.

“Essas descobertas levantam questões urgentes sobre se existem janelas críticas de desenvolvimento, quando a exposição a alimentos ultraprocessados é especialmente arriscada para a vulnerabilidade à dependência”, comentou, em nota, Ashley Gearhardt, professora da Universidade de Michigan que liderou o estudo. “Hoje, crianças e adolescentes consomem proporções ainda maiores de calorias de alimentos ultraprocessados do que os adultos de meia-idade consumiam na juventude. Se as tendências continuarem, as gerações futuras poderão apresentar taxas ainda maiores de dependência de alimentos ultraprocessados mais tarde na vida.”

Palatáveis 

Segundo Jamily Drago, endocrinologista da clínica Metasense, em Brasília, alimentos altamente palatáveis como os ultraprocessados, que recebem aditivos, gordura e açúcar para ficarem mais saborosos, desencadeiam mecanismos cerebrais semelhantes aos de outros vícios. “Eles induzem uma necessidade cada vez maior de liberação de dopamina, enzimas e hormônios para dar a sensação de prazer ao comer”, diz. 

A especialista destaca a necessidade de se evitar esses produtos na infância. “Principalmente na infância, deve-se conscientizar sobre os riscos à saúde da superexposição a esses alimentos, principalmente ao que se diz a alterações cognitivas na idade adulta e idade avançada”, diz. Ela lembra que alguns estudos sugerem uma associação entre tempo de exposição aos ultraprocessados e menor capacidade cognitiva na velhice.

Atenção para os “light” e “low carb”

O estudo da Universidade de Michigan que encontrou um índice elevado de dependência em alimentos ultraprocessados por pessoas da geração X (nascidas entre 1960 e 1979) também traz um alerta: mesmo produtos rotulados como “light”, “low carb” ou “ricos em proteína” podem ser tão problemáticos quanto os industrializados tradicionais. “Muitas vezes, esses produtos carregam um apelo de marketing que dá a impressão de serem mais saudáveis, mas ainda são ultraprocessados”, explica a nutricionista Rayanne Marques, de Brasília. “Eles podem conter adoçantes artificiais, excesso de sódio, conservantes e gorduras de baixa qualidade, que impactam negativamente a saúde quando consumidos em excesso”, diz. 

Segundo a nutricionista, há estratégias que ajudam a reduzir a compulsão pelos ultraprocessados. “Um passo importante é reorganizar a rotina alimentar com refeições equilibradas e nutritivas, que aumentam a saciedade e reduzem a vontade de buscar alimentos de baixo valor nutricional”, diz Rayanne Marques. Ela lembra que a reeducação é gradual. “O paladar humano é adaptável e, com pequenas mudanças consistentes, é possível readquirir a percepção natural dos sabores. Reduzir o sal e o açúcar aos poucos, utilizar temperos naturais (ervas, especiarias, limão) e priorizar alimentos in natura são estratégias eficazes. Com o tempo, o organismo se acostuma a sentir prazer no sabor real dos alimentos, tornando os ultraprocessados menos atrativos.”

A psicóloga Rejane Sbrissa, especialista em transtornos alimentares, também destaca a importância do acompanhamento comportamental. “Os principais mecanismos psicológicos ligados às compulsões alimentares são não saber lidar com os sentimentos e descontá-los na comida como meio de compensação. O comer é muito ligado psicologicamente a ‘devorar’, ‘rasgar’ a comida, como expressão da raiva que a pessoa não consegue externalizar na situação e momento certos”, explica. “A comida ultraprocessada é de fácil assimilação no organismo, pois é feita com farinhas, açúcares, temperos e outros químicos refinados. Além disso, esses produtos não precisam de preparação: é só abrir uma embalagem e praticamente engolir a comida, com o mínimo esforço.” (PO)

Três perguntas para

Esthela Oliveira, nutróloga, integra o corpo clínico do Hospital Israelita Albert Einstein e da Side Clinic, em São Paulo

Há nutrientes ou padrões alimentares que ajudam a moldar os circuitos cerebrais envolvidos no desejo por produtos ultraprocessados?

Sim. O próprio estudo mostra que o vício no ultraprocessado ativa circuitos de recompensa cerebral que são semelhantes às substâncias químicas. E a gente sabe, pela literatura, que padrões alimentares ricos em alimentos naturais e integrais, como frutas, verduras, proteínas de boa qualidade e fibra, ajudam a modular esses circuitos. Então, nutrientes como, por exemplo, triptofano, magnésio, ômega 3, vitaminas do complexo B, favorecem a produção de neurotransmissores como a serotonina e a dopamina, que vão equilibrar o humor e reduzir a compulsão. Além disso, manter refeições mais estruturadas, evitar, por exemplo, muito jejum, pode reduzir a hiper-reatividade do cérebro a esses alimentos altamente palatáveis. Ou seja, não é só força de vontade. É, sim, possível usar a nutrição como uma ferramenta de equilíbrio neuroquímico.

O estudo mostra que mulheres com sobrepeso têm até 11 vezes mais chance de desenvolver sinais de dependência. Por que esse ciclo é tão difícil de romper do ponto de vista fisiológico? 

Os ultraprocessados têm essas combinações de açúcar, gordura, sal, que vão ativar fortemente a dopamina. E aí levam a esse prazer imediato, mas depois tem uma queda brusca do neurotransmissor. Essa oscilação é que vai gerar mais desejo e vai fazer com que a gente queira comer mais e buscar mais. No corpo da mulher, por exemplo, especificamente ali depois da menopausa, tem ainda a influência dos fatores hormonais, porque tem a queda de estrogênio e de progesterona, e isso vai modular o apetite. Vai fazer com que a mulher tenha mais apetite, mexer no humor e resultar num acúmulo maior de gordura. Além disso, o próprio excesso de gordura corporal mantém um estado inflamatório crônico e isso pode desregular a parte de saciedade, aumentando a compulsão. É como se o corpo ficasse programado para repetir o ciclo, e isso vai tornando a coisa muito mais desafiadora, se não tiver uma intervenção. 

Medicamentos que modulam apetite podem ter um papel no tratamento de paciente com esse tipo? 

Com certeza, mas como parte de uma estratégia muito maior, e não isoladamente. O estudo reforça que a gente está diante de um padrão de dependência alimentar, não é fome. Em alguns casos, o uso de medicamentos que atuam no mecanismo de saciedade, como os agonistas de GLP-1, por exemplo, podem ajudar muito a reduzir essa vontade e dar ao paciente uma chance de ter uma nova relação com a comida. No entanto, o remédio sozinho não resolve. É importante integrar a intervenção com reeducação alimentar, suporte psicológico, mudança no estilo de vida. Assim, a pessoa poderá reprogramar seus circuitos de recompensa, principalmente de forma duradoura. (PO)

 

 

 

 

Paloma Oliveto Repórter sênior

Formada na Universidade de Brasília, é especializada na cobertura de ciência e saúde há mais de uma década. Entre as premiações recebidas, estão primeiro lugar no Grande Prêmio Ayrton Senna e menção honrosa no Prêmio Esso.