Bruxelas quer pôr fim ao desconto no ISP em vigor desde 2022 e enviou uma carta ao Governo a exigir “ações concretas” para o eliminar. Não há sanções imediatas, mas, como explica o especialista em Assuntos Europeus Manuel Serrano, “é o primeiro degrau de pressão”
Bruxelas quer que Portugal acabe com o desconto no Imposto sobre Produtos Petrolíferos (ISP), em vigor desde 2022. Numa carta enviada ao secretário de Estado Adjunto e do Orçamento, José Maria Brandão de Brito, e ao Ministério das Finanças, a Comissão Europeia pede “ações concretas” para eliminar uma medida criada no pico da crise energética, quando o Governo, então ainda com António Costa, devolveu aos consumidores a receita adicional de IVA, tornando o alívio no ISP equivalente a uma descida do IVA de 23% para 13%.
O desconto manteve-se com ajustes e, este ano, houve recomposição: mais um cêntimo no ISP por litro e redução da taxa de carbono.
Para a Comissão, a continuidade do alívio é um subsídio indireto aos combustíveis fósseis e não está plenamente alinhada com as recomendações do Conselho; no plano orçamental, Bruxelas estima um custo líquido de 0,3% do PIB em 2024 e 0,1% em 2025. Do lado do Governo, o ministro da Economia e da Coesão Territorial, Manuel Castro Almeida, admite “ajustamentos” faseados – não “de uma só vez” -, preferencialmente acompanhando quebras de preço para mitigar o impacto para os consumidores na semana seguinte à mexida.
Para perceber o alcance da carta e as possíveis consequências, o especialista em Assuntos Europeus Manuel Serrano explica que este tipo de iniciativa é o primeiro degrau de pressão institucional: “A Comissão Europeia tem o hábito de começar por uma carta e um aviso; é um sinal político de que não está satisfeita e de que é melhor resolver o assunto”, diz, notando que, nesta fase, o passo anunciado é “instar o Conselho da União Europeia a aprovar uma recomendação”. E clarifica: “Mesmo que seja aprovada, uma recomendação do Conselho não é vinculativa. A diferença é que deixa de ser apenas a posição da Comissão para passar a ser a posição do Conselho, o que confere uma pressão política e institucional muito maior.”
Em termos práticos, acrescenta, “o Conselho, onde se sentam os Estados-Membros, ficaria a reconhecer que Portugal está em falta”, algo com peso reputacional.
Serrano sublinha que, para Bruxelas, “o desconto configura um subsídio indireto aos combustíveis fósseis e contraria os objetivos de transição energética e a eliminação gradual desses apoios”. Daqui resulta, nas suas palavras, “um raspanete – já bastante sério – para Portugal”.
Para já, não há sanções automáticas. “Estamos a falar de uma recomendação potencial, não de uma obrigação. Portugal, em teoria, poderia manter o desconto, mas isso teria custos reputacionais nas instituições europeias e no seio do Conselho”, enquadra. O especialista distingue ainda papéis: “O Conselho Europeu define as grandes orientações – como a transição climática – e as decisões concretas, como recomendações formais, são tomadas no Conselho da União Europeia.”
E se Portugal não acatar? “Se a situação escalasse, a Comissão poderia entender que há violação de regras do mercado interno, da concorrência ou das ajudas de Estado e avançar com um procedimento de infração junto do Tribunal de Justiça da União Europeia”, explica, lembrando que estes processos são frequentes em atrasos de transposição de diretivas. “Mas aqui o ponto de partida seria diferente: primeiro, a pressão política via recomendação; depois, se persistir a divergência, a avaliação jurídico-material.” Há ainda um cenário técnico possível: “A Comissão pode integrar o tema no Semestre Europeu, mantendo o ‘naming and shaming’ e pedindo relatórios de progresso até que o país alinhe com as orientações.”
No plano interno, a leitura do especialista é que Portugal tenderá a evitar o confronto aberto. “Ao longo do tempo, a política europeia portuguesa tem privilegiado ser o bom aluno. Não somos a Hungria”, afirma. Isso não elimina a gestão política do impacto: “Acabar com o desconto aumenta a receita, mas encarece os combustíveis e gera pressão social. Por isso, tenta-se distribuir os ajustamentos no tempo, aproveitando fases de baixa do crude para mitigar a reação.”
Sendo uma recomendação e não uma obrigação, “Portugal tem alguma margem para gerir o ‘timing’ e o modo de eliminação do desconto”, embora a direção esteja traçada: “O que está verdadeiramente em causa é o entendimento político e jurídico da Comissão de que se trata de um apoio indireto aos fósseis que contraria objetivos europeus; por isso, pressiona-se para que termine.”
Conclusão: hoje não há efeitos imediatos além do sinal político. O Governo já admitiu que “vai ser necessário fazer ajustamentos”, “não de uma só vez” e preferencialmente em momentos de descida dos preços. Bruxelas pede um plano de eliminação e atualizações regulares. Se Portugal adiar sem apresentar um calendário credível, a pressão pode subir de patamar – do rótulo de “mau aluno” à abertura de um processo de infração -, mas, a avaliar pelas posições públicas, o desfecho mais provável é uma saída faseada, negociada e acompanhada da evolução dos mercados.
Em última instância, quando os aumentos chegarem, Serrano admite o “exercício clássico” de comunicação política: “É um exercício cínico típico quando algo corre mal, dizer que se está a cumprir ordens” – crítica que atribui ao discurso nacional que alimenta “o ‘bicho-papão tecnocrata’”, quando, muitas vezes, “há falta de ação política a nível nacional”.
Segundo os registos da Direção-Geral de Energia e Geologia, a carga específica do ISP por litro (ISP+taxa de carbono) subiu tendencialmente: na gasolina 95 passa de cerca de €0,51/l em 2013, por exemplo, para um pico em torno de €0,63/l (2025), mas após a invasão da Ucrânia, e a pressão inflacionista, houve um “desconto” que empurrou o total para um mínimo de €0,45/l em 2022, sendo depois gradualmente recomposto.
No gasóleo A, a trajetória é idêntica: de ~€0,38/l em 2013 até máximos perto de €0,50/l, com o alívio pós-guerra a fazer o total tocar €0,30/l em 2022 antes da recuperação; em 01/01/2025 vigoram ~€0,63/l (gasolina) e ~€0,50/l (gasóleo).