“Tudo tem mãe na mata”, é assim que o livro começa para dizer das coisas vivas que formam a floresta. Está tudo enredado, ligado e protegido. Bicho tem mãe; árvore, rio e montanha têm mãe. A floresta também tem mãe, e o seu nome é Curupira.

Maickson Serrão, contador dessa história, avisa (e quem avisa amigo é): quando você for entrar ali, é bom pedir licença para ela, afinal a mãe é a guardiã da mata. Cuidadora que é, a gente já pode até imaginar, a Curupira é invisível. O que nem todo mundo sabe imaginar é que, para cuidar, ela pode assumir a forma que quiser. Ela vira bicho, vira vento e vira tempestade. Então, se for preciso, ela pode te assustar e te mandar embora.

Essa mãe, a Curupira, é um ser encantado da floresta, e, no universo das encantarias, cada um dos encantados tem seus métodos para proteger a mata e seus segredos. Os indígenas e ribeirinhos podem perceber sua presença e lhe pedem resguardo. A Curupira cuida deles — e eles também cuidam da floresta: as pessoas que vivem na floresta são também floresta e, sem elas, a floresta não fica de pé. Em algumas situações, os encantados protetores podem, também, dar medo, mas, principalmente, eles inspiram respeito.

Cultura oral

A mãe da mata, livro que chega numa edição linda da editora Caixote, é uma história tecida entre os desenhos de Chico Santos e o texto-voz de Maickson Serrão, indígena tupinambá, ribeirinho da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiun, na Amazônia Paraense.

Ilustração de Chico Santos (Divulgação)

Filho de uma cultura de oralidades, Maickson cresceu escutando esta e muitas outras histórias da boca de sua avó Zoraide e de sua tia Maurícia. Para cuidar desse patrimônio, ele criou o Pavulagem, podcast de contação de histórias tradicionais e fantásticas da floresta amazônica. Fez ainda o curta-metragem de animação A origem da noite, que conta (com acessibilidade em Libras) uma história bonita do povo maué. O livro é mais um capítulo em seu plano de resgate e preservação da cultura oral ribeirinha e indígena da região.

Pavulagem, na Amazônia, é um jeito de se referir às pessoas que gostam de se mostrar, e Maickson diz que gosta mesmo. Mas Pavu, quando se mostra, dá a ver tanta coisa, tanta coisa que não é coisa…

Pessoa-floresta que é, nos contando as histórias que animam seu povo, Pavu ensina a dimensão da interdependência no cuidado. No leque que abre em seu cortejo, esse movimento de exibir a cauda próprio dos pavões, Pavulagem traz em sua plumagem tudo que o constitui. Ele é filho que cuida. Em suas histórias, apresenta outra experiência de tempo e de encontro, e também dá lugar às pessoas que guardam as histórias que ele vai nos contar.

Para defender a Amazônia, tem que defender quem vive nela, e escutar suas histórias é um bom começo

Para a sorte das crianças que as escutam, as histórias dos Encantados da Amazônia não se contam na dimensão moralizante das fábulas, e, também diferentemente das fábulas, os entes ali presentes não são animais humanizados. Toda a experiência viva — nós, os bichos, as plantas, os rios e as montanhas — assume o estatuto legítimo da alteridade e compõe a rede de relações que se forma para fazer a vida acontecer. Nós somos apenas um dos elementos dessa rede que inclui todos os outros seres vivos e animados, esses que, muitas vezes, nós, não indígenas das cidades, não enxergamos nem escutamos.

Ao chegarmos perto desse patrimônio, notamos também que aqueles que poderíamos perceber como heróis e heroínas, os protagonistas da história, aparecem em sua dimensão desejante: suas contradições e imperfeições têm lugar, interesses ficam expostos, as disputas apresentam o jogo de forças que compõem a vida.

Ilustração de Chico Santos (Divulgação)

Que Pavulagem tenha escolhido falar com as crianças e feito essas histórias chegarem até aqui é mais uma oportunidade que a floresta nos dá de redimensionar a experiência interespécies de cuidado e entender que, para ficarmos vivos, a floresta tem que vir primeiro. É como Maickson costuma dizer: “Se os não indígenas tivessem aprendido com a gente, o mundo talvez estivesse melhor”. Para defender a Amazônia, tem que defender quem vive nela, e escutar suas histórias é um bom começo.