A avó sentada na poltrona com o olhar desabitado, voltado para o nada. Tudo melancólico à luz azul da janela. O neto sobe pelos braços da poltrona, olha para a avó por cima, por baixo, não consegue resgatar a antiga presença dela. Até os porta-retratos na parede estão despovoados.
Nas páginas à direita de Vovó, fica comigo?, de Iêda Carvalhêdo e Fran Matsumoto, vemos, emoldurados, os momentos dos dois. Cozinham, viajam, brincam de desbravadores. O neto se pergunta por onde anda a mente da avó: “A vovó me esqueceu”.
A vovó parece estar numa viagem particular e não o levou.
Em ilustrações delicadas e muito comoventes, seguimos com a senhora sentada sem contato visual com a criança, que tenta insistentemente lhe apresentar as lembranças que deveriam compartilhar. A onça de pelúcia que caçavam, os binóculos, a fantasia de super-herói. Surgem imagens dessa viagem pessoal da avó nas amareladas memórias: uma casa caótica com todos os móveis que um dia já ambientaram a vida dela, as pegadas da onça que eles tanto brincavam de procurar, a selva, os dois juntos de binóculos na mata avistando as costas da onça.
Ilustração de Fran Matsumoto (Divulgação)
Vovó, fica comigo? é o que o menino pede, é o nome do livro; ficar é tudo que ela faz, ela fica, mas não necessariamente com ele.
Como explicar a uma criança o luto que vivemos ainda durante a vida das pessoas que, com os anos, perdem a própria história e os dias presentes? Os dias deixam de se seguir somando–se uns aos outros e passam a se sobrepor indistintos, sem constituir uma vivência. Como explicar a qualquer pessoa essa perda e esse medo que todos temos, o medo de envelhecer sem mais somar os dias e de perder o nome e o rosto de quem foi o nosso maior amor?
Sem explicações
Esse livro encantador não explica. E já quase não há o que explicar, esse parece ser o destino de grande parte dos que sobrevivem. Haverá, talvez, um dia, alguma naturalidade nisso, seremos nós a história do outro, seguiremos vivendo pela pessoa querida, entregando-lhe, todos os dias, um dia a mais, ainda que ela não possa retê-lo. Vamos com frugalidade constatar as novas perdas na razão, e no meio delas a memória manterá uma miudeza qualquer aprendida nos tempos de escola, porque a cabeça parece achar preciosa a sequência do alfabeto, o hino nacional, a capital de um país nunca visitado: hoje pela primeira vez ela não reconheceu a filha. Vamos encarar cada apagamento como um amadurecer ao contrário, com a mesma acolhida com que respondemos à primeira vez que o bebê olhou para o pai e disse “papai”, à primeira vez que a criança corrigiu a própria palavra errada, a palavra errada que adorávamos e agora pode voltar no léxico da avó assim que se apagar a palavra certa.
Pode ser que nossos idosos estejam perdendo a memória para que o fim de tudo não seja abrupto
Vamos, talvez, no futuro, saber amar essa ciranda de aprendermos e depois apagarmos, vivermos tudo isso e depois no fim desvivermos aos poucos até que os olhos fiquem vazios ao pé da janela, o que pode ser melhor do que morrer de repente e perder tudo em um segundo, para sempre. Pode ser que nossos idosos estejam perdendo a memória e deixando de produzir novas lembranças com o empilhar dos dias para que o fim de tudo não seja abrupto, para que nos desapeguemos, com eles, de cada nome, cada rosto, até que possam ir embora com menos susto, com muito menos peso na mala em que guardamos tudo que a morte leva de nós implacavelmente.
Ilustração de Fran Matsumoto (Divulgação)
E de repente pode ser que uma canção antiga ilumine os olhos vazios da avó, e ela cantarole a letra toda, do jeito que cantava para ninar o neto. Quem sabe, por uns minutos, a canção em que ela encaixava o nome do menino traga de volta esse nome perdido, “Fica comigo, vovó”, e eles poderão sorrir juntos na poltrona, mesmo que já não possam perseguir a onça que agora finalmente espreita a sala entre os vasos de plantas, a selva que eles tanto exploravam juntos.
Como explicar a uma criança que a vovó viajou para dentro de si e não a levou? Vovó, fica comigo? não explica, mas talvez acalante. A onça surge na sala olhando diretamente nos nossos olhos, a onça nos dá esse olhar que a avó já não concede. De toda forma, estamos sempre falando de saudade.



