Há algum tempo, numa conversa em que participei no Festival dos Bons Sons, organizada pelo Gerador, em que discutíamos o crescimento da intolerância, do discurso de ódio e do populismo radical, a psicóloga Catarina Quadros lançava o desafio sempre difícil da empatia. E se tentássemos ouvir as razões dos que se sentem seduzidos pelas conversas da extrema-direita? E se tentássemos pôr-nos por dois minutos no lugar do xenófobo? Argumentava que, sem esse exercício, ninguém convence ninguém. É um exercício duro, custoso e que me parece, muitas vezes, impossível, sobretudo quando resvala para o domínio da crença. Cortei com o amigo de décadas, homofóbico, quando percebi que não havia por onde explorar mais argumentos, já que, para ele, nada colhia sobre humanismo, porque o ponto de partida era a alegada salvação ou perdição para lá deste mundo. Mas a verdade é que as razões são, raras vezes, do domínio da crença. É também verdade que, em muitos debates, convocar a ciência devia ser suficiente para esgrimir argumentos, mas o conhecimento científico parece ficar de fora da argumentação, o que nos deve entristecer a todos.
Com o Bernardo Mendonça, jornalista e amigo, tenho conversado mil vezes sobre as bolhas em que estamos metidos. Os outros chamam-nos wokes/marxistas culturais/devassos ou o que lhes apetecer nesse dia e nós dizemos que eles são fachos/reacionários/conservadores ou o que nos apetecer nesse dia. O problema é que não furamos as bolhas e continuamos a falar para nós mesmos, exclusivamente para dentro (talvez esteja a fazê-lo neste texto), como se isso fosse argumentar. Estamos cheios de razões e de arrogâncias de superioridade intelectual e moral, de um lado e do outro, e simplesmente desistimos dos outros (contra mim falo em cada uma destas palavras).
O livro “Por dentro do Chega”, de Miguel Carvalho, vem agitar as bolhas aparentemente impenetráveis, largar um pedregulho no charco de todos os imobilismos, porque nos leva lá dentro, ao conhecimento das pessoas reais, de algumas que nos causam repulsa, mas também de outras que quase conseguimos entender, que entendemos mesmo ou em quem ficamos a pensar.
O Miguel Carvalho merece todos os agradecimentos do mundo pelo trabalho que desenvolveu. É jornalismo. É investigação. É rigor e seriedade. É desassombro e coragem. O livro é uma vertigem, um susto, mas desengane-se quem for à procura de um rol simplista de inanidades anedóticas (que há), de ilegalidades (que há), de cenas obscuras (que há) ou de um retrato sinistro de um líder político e dos seus sequazes (que há). O livro tem muito mais e, por isso, oferece-se como uma plataforma de pensamento para pensarmos em conjunto sobre o caso português.
A cada leitor, como em qualquer livro, haverá aspetos que interpelam mais ou menos. Eu detive-me a menos de meio, nas páginas em que Miguel Carvalho lista os grupos a que o Chega foi buscar militantes no seu súbito crescimento. Estão lá todos (ou devia dizer “estamos”?). Os polícias, os militares, os juristas, os professores, os operários, os sindicalistas, os que vieram do Bloco, do PCP, do PS, do PSD e do CDS, os comerciantes, os monárquicos, mas também os republicanos, os abstencionistas e os que já votaram, os empresários e os explorados, os milionários e os pobres, os lobistas e os ingénuos. Salvam-se os artistas! Viva os artistas que veem mais longe! Detive-me, porque talvez, pela primeira vez, tenha tomado consciência da força da penetração da extrema-direita e da dificuldade de a combater. É um vírus nocivo, destruidor das democracias, que se instalou, nos corrói, nos mata e que só encontrou imunidade na arte e na cultura.
E foi esta constatação que me fez voltar à Catarina Quadros para, a propósito deste livro, tentar a empatia. E se eu votasse no Chega? Como leria este livro? Saindo da resposta fácil ou diminuidora da capacidade do eleitorado, sou levado a crer, infelizmente, que não serão muitos os que, lendo-o, mudarão o seu sentido de voto. Porque, pondo-me no lugar do outro, esse lugar que considero estranho, acho que a reação poderia ser algo como “sim, o Chega é assim, mas os outros partidos também são. Ao menos neste encontro quem fala por mim, me representa ou pensa como eu”. O paradoxo gigante do populismo que invadiu o mundo é que se alimenta da simplificação, mas instalou-se de tal forma que a sua erradicação é tão complexa que ninguém conhece o antídoto.
Chegado aqui, na leitura do livro, fiquei a pensar que, para tentar furar a bolha, talvez valha a pena agarrar os dados que o Miguel Carvalho apresenta, assumir o lugar que olha para isto dizendo que “os outros partidos também são assim”, e chegar à minha conclusão enquanto leitor. O Miguel Carvalho mostra, na verdade, que o Chega faz tudo muito melhor do que os outros partidos.
Vejamos (e resuma-se tudo o que vem a seguir a dois lemas: o Chega tem mais; o Chega faz melhor):
Todos os partidos têm lá dentro pessoas que não sabem muito bem quais os valores do partido? Sim. Há comunistas católicos, socialistas homofóbicos, CDS’s “gay-friendly”. O Chega tem mais. Porque agarra todas as agendas e permite uma militância à la carte. No Chega cabe tudo, porque não tem ideologia e é o albergue espanhol de todas as ideologias. Não sou homofóbico, mas sou racista? Check! Não sou anti-imigração, mas não gosto da igualdade de género? Check! O Chega é um apeadeiro oportunista, porque desprovido de princípios, navegando ao sabor do que atrai votos. O Chega é o campeão do desnorte ideológico.
Todos os partidos têm lá dentro pessoas que os envergonharam por posições ideológicas dissonantes ou atitudes menos próprias? Sim. Há uma Zita Seabra para cada PCP, há uns cornos de Manuel Pinho para cada PS, há um Duarte Lima para cada PSD. Mas o Chega tem mais. Ao longo das 750 páginas de “Por dentro do Chega” lemos dezenas e dezenas de casos de fraude, de evasão fiscal, de agressão, de corrupção, de falsificação, de uso indevido de dados, de lenocínio, de uso indevido de dinheiro, de criação de perfis falsos na internet, de contas mal explicadas, de difamações, de calúnias. Um rol de crimes com uma dimensão que nunca vimos, de forma tão expressiva, noutros partidos. O que faz do Chega mesmo especial é que não estamos apenas perante criminalidade infeliz de militantes do partido, mas sim perante um modus operandi que está dentro do próprio partido. O Chega quer limpar Portugal, mas não se limpa a si próprio.
Todos os partidos têm caciques, disputas e quezílias internas, pessoas que vivem do funcionarismo ou das oportunidades que vão aparecendo e desaparecendo na vida política. Todos sem exceção, diria eu. Por muito que muitos tenhamos carreiras antes e depois da atividade política, há, em todos os partidos, quem viva apenas das oportunidades que vão aparecendo. E há um lado disso que descredibiliza a política, porque se torna menos sobre ideias e mais sobre carreiras. É o tal sistema que o Chega diz que vem abanar. Acontece que o Chega tem mais. Ao longo do livro vamos conhecendo a lista imensa de (quase) indigentes que viram no Chega a oportunidade de ter um salário, os que não pagavam contas e se vergaram ao líder por um lugar de assessoria ou de deputado para resolver a vidinha. Não fiz a contabilidade, mas, da leitura do livro, ouso dizer que são proporcionalmente mais do que nos outros partidos e que, sobretudo, são mais violentos os atos de caciquismo, com seguranças, tasers, difamações, ameaças de agressões. O Chega ocupa, na verdade, o lugar cimeiro do mais degradante das vidas partidárias.
Todos os partidos têm oportunistas. Os que lá estão porque sim. Lembro-me, ao ir para o Governo em 2015, do amigo de infância que me mandava o seu currículo dia sim, dia sim, porque se dizia o mais socialista de todos e com o perfil mais adequado para ser meu assessor. Não lhe liguei nenhuma depois de ler o tal perfil e, em poucos meses, passou de devoto seguidor de todas as opções do PS ao atualmente mais crítico (porque agora já são outros os que governam). O Chega tem mais. Para além dos desiludidos com os seus partidos de origem ou dos que, legitimamente, alteraram a sua posição, o que se compreende, encontramos no Chega, como em mais nenhum partido, os que lá estão porque ficaram fora das listas autárquicas ou nacionais dos seus partidos, os revanchistas, os ex-tudo ou quase-tudo que viram num partido em crescimento uma oportunidade para se reinstalarem. O Chega diz que é o partido que quer combater os “tachos”, mas constituiu-se e cresceu à custa dos que não suportaram perdê-lo.
Quase todos ou pelo menos alguns dos partidos terão umas sociedades pouco transparentes nas suas fundações. Maçons e Opus Dei, redes de influências, há por todo o lado, a meu ver infelizmente (sobretudo porque a opacidade é inimiga da democracia). Mas o Chega tem mais. Tem maçonaria, tem Opus Dei, mas tem tudo o que de mais vil há de movimentos neonazis, alianças com organizações internacionais de legalidade duvidosa, promotoras da desinformação, da manipulação, com esquemas financeiros opacos e com redes que misturam o mundo empresarial, a política, a religião e interesses escondidos. O Chega bate todos aos pontos.
Todos os partidos alimentam, em algum momento, o culto da personalidade e do líder. Em qualquer congresso todos se levantam para aplaudir a chegada do presidente, do secretário-geral, do coordenador ou do porta-voz, muitos replicam as suas mensagens. Faz parte. Mas o Chega faz melhor. O culto do líder é promovido pelo próprio, alimentado com recursos e torna-se claro que assim é porque todo aquele partido é apenas um projeto pessoal do seu líder. Quem não o segue é ostracizado, ameaçado e, preferencialmente, convidado a desaparecer. Porque isto não é sobre o país, não é sobre as pessoas, é sobre si próprio.
Percebo, pois, quem ler este livro e pensar “os outros também.” A chave está em mostrar que, sendo parcialmente verdade, o Chega é mais em tudo o que é pior. E é mesmo. Porque o Miguel Carvalho nos trouxe dados e não opiniões, ainda que não as esconda e consiga fazer o exercício de os separar.
Com tudo o que o Chega faz mais e melhor, ficamos conscientes de que o que fará mesmo mal é decidir e pensar em Portugal. Porque veio para limpar a corrupção, romper com os vícios do “sistema”, dar voz a toda aos que não se sentiam representados, mas o livro “Por dentro do Chega” mostra que tudo o que o sistema tem de sujo é ainda mais podre dentro daquele partido. Chegado ao fim do livro, concluo que o Chega é o melhor exemplo de tudo o que o Chega critica. Só não consegue olhar para si próprio. Nunca será bom para os outros, porque simplesmente é um reprodutor e amplificador do que funciona mal.
É, pois, tempo de denunciar estas contradições. Mas, sobretudo, de repensarmos profundamente as opções de governação, todos nós que esquecemos, com o triunfo de um neoliberalismo mais ou menos assumido mas sempre selvagem, com uma decisão distante do contexto de quem trabalha, que há, sobretudo a partir de 2008, uma população esmagada por dificuldades, que deixou de acreditar no valor da democracia porque o peso do dia de hoje apaga a memória do que já construímos em conjunto. É preciso estar na rua, ouvir, explicar e resolver problemas, com o tempo e a serenidade que a democracia requer.
Vai demorar tempo a expor a contradição e a falsidade do Chega e a mostrar a todos que podemos ser melhores pessoas coletivamente. O Miguel Carvalho ajuda-nos, com esta sua obra, a trilhar caminho. Em meu nome e dos meus filhos, obrigado, Miguel.