A idade do diagnóstico inicial de autismo está associada a perfis genéticos específicos, assim como diferentes trajetórias do neurodesenvolvimento. A conclusão é de uma equipe internacional de cientistas, coordenada pela Universidade de Cambridge, no Reino Unido. O artigo, publicado na revista Nature, lança luz sobre a complexidade do espectro autista, sugerindo que não se trata de uma condição única, mas de um transtorno composto por múltiplas variantes do DNA e causas diversas. 

Os pesquisadores analisaram dados de mais de 47 mil pessoas com TEA em grandes levantamentos internacionais. Também acompanharam trajetórias de desenvolvimento socioemocional de crianças incluídas em três diferentes estudos na Austrália e no Reino Unido. Os cientistas investigaram fatores poligênicos: conjuntos de milhares de variantes que podem, coletivamente, moldar traços particulares. 

Segundo os autores, fatores poligênico comumente herdados explicam cerca de 11% da variação na idade em que o transtorno é identificado. O índice é comparável ao impacto de variáveis clínicas e sociodemográficas que, também em conjunto, contribuem por pelo menos 15% da diferença no momento de diagnóstico de TEA, se no início da infância, ou mais tardiamente.

Padrões 

O estudo, liderado por Xinhe Zhang, pesquisadora da Universidade de Cambridge, sugere dois padrões distintos do transtorno. No primeiro, crianças apresentam dificuldades socioemocionais desde a primeira infância. Essas adversidades permanecem estáveis ou sofrem uma leve diminuição na adolescência. Segundo os pesquisadores, trata-se do grupo de pacientes que costuma receber o diagnóstico mais precoce. Na segunda trajetória, características do TEA aparecem um pouco mais tarde e, na adolescência, são acentuadas. A identificação da condição, nesses casos, costuma ocorrer anos depois. 

Não se trata, porém, de diferenças meramente clínicas. Os cientistas descobriram que esses perfis também se refletem no nível genético. Eles identificaram dois conjuntos de variantes genéticas que, combinadas, aumentam a propensão ao autismo. Um desses fatores poligênicos está associado ao diagnóstico precoce e correlaciona-se com transtorno de deficit de atenção e hiperatividade (TDAH). 

Já o outro, associado à detecção mais tardia, relaciona-se mais geneticamente com TDAH, depressão, transtorno de estresse pós-traumático e comportamento de automutilação. “O que descobrimos é que não existe um único caminho genético para o autismo. Existem pelo menos dois, com consequências distintas ao longo da vida”, explica Varun Warrier, também da Universidade de Cambridge. 

Prática

Os cientistas destacam que a diferenciação é importante não apenas para a ciência, mas para a prática clínica. Segundo Zhang, muitos estudos anteriores tratavam o autismo como um fenômeno homogêneo, o que dificultava a interpretação de resultados divergentes sobre causas e condições associadas. “Isso ajuda a compreender por que pessoas diagnosticadas em momentos diferentes da vida podem ter perfis clínicos e necessidades de apoio distintos”, destacou Zhang. 

Além disso, os autores ressaltam que fatores sociais e culturais também influenciam fortemente a idade de identificação do TEA. O acesso a serviços de saúde, a conscientização das famílias, o estigma e algumas diferenças de gênero desempenham papel significativo, alegam. Estudos mostram que meninas tendem a ser diagnosticadas mais tarde, porque seus sintomas são menos evidentes ou confundidos com outras condições de saúde mental.

A especialista em neuropsicologia Michelle Andrade, professora de psicologia do Ceub, acredita que o estudo reforça a importância da individualização da abordagem. “Para a prática clínica, isso significa a necessidade de diagnósticos mais sensíveis e de intervenções personalizadas. Não há uma fórmula única: cada pessoa no espectro merece uma avaliação individualizada e apoios específicos, respeitando sua forma de ser e de se desenvolver”, diz.

O neurologista Carlos Uribe, do Hospital Brasília, Rede Américas, ressalta que, como o estudo ainda é preliminar, não há como definir uma nova estratégia de diagnóstico precoce. “A recomendação continua sendo de fazer um rastreio ativo. Frente a qualquer queixa de alteração do desenvolvimento, e dificuldade de interação social e linguagem, abrir a possibilidade de a pessoa realmente ter TEA. Os maiores benefícios vêm de intervenções precoces.”

 

Três perguntas para

Leandro Freitas Oliveira, psicólogo, doutor em neurologia e neurociências, professor da Universidade Católica de Brasília (UCB)

Por que alguns sinais do autismo aparecem logo nos primeiros anos de vida, enquanto em outras pessoas só se tornam evidentes na adolescência ou mesmo na idade adulta?

Primeiramente, é importante dizer que a biologia não é exata. Logo, temos variações tanto na manifestação dos sintomas, quanto no início do seu aparecimento. O autismo é uma condição  marcada por alterações no desenvolvimento cerebral, especialmente em regiões associadas à comunicação social, percepção sensorial e regulação emocional. Em algumas crianças, essas diferenças podem ser percebidas já nos primeiros anos, pois o desenvolvimento da linguagem, da interação social e da brincadeira simbólica funciona como um “marcador precoce” do transtorno. Entretanto, em outros casos, o cérebro consegue, por um período, funcionar de forma compensatória, mascarando essas diferenças, seja pela plasticidade neural, seja pelo suporte ambiental. É comum que sinais mais sutis só se tornem evidentes em fases de maior demanda social e cognitiva, como na adolescência e idade escolar, quando a complexidade das relações interpessoais e das exigências pedagógicas expõe fragilidades que antes estavam encobertas.

O estudo publicado na Nature aponta uma ligação entre diagnóstico tardio e maior risco de transtornos como déficit de atenção, depressão e ansiedade. Como condições se relacionam com o autismo?

O diagnóstico tardio para qualquer transtorno é sempre um problema, afinal implica anos de dificuldades não reconhecidas, o que pode sobrecarregar os sistemas de estresse do cérebro, levando a quadros de ansiedade e depressão. Além disso, o funcionamento executivo, (responsável pelo manejo das emoções, tomadas de decisões e estabelecimento de metas), área logo atrás da nossa testa, tende a estar alterado no autismo, o que também é observado no TDAH. Isso explica a elevada comorbidade: as mesmas redes de atenção, planejamento e inibição comportamental estão implicadas. A ausência de suporte adequado intensifica o impacto dessas dificuldades, resultando em maior vulnerabilidade a transtornos afetivos e de regulação emocional. 

Os resultados podem levar a novas estratégias de acompanhamento?

O estudo é bem interessante, afinal as descobertas oferecem duas contribuições práticas: primeiro, apontam para a necessidade de rastreamentos repetidos em diferentes fases do desenvolvimento, já que sinais podem emergir de forma tardia; segundo, sugerem que monitorar trajetórias socioemocionais e considerar fatores genéticos pode auxiliar na estratificação do risco, antecipando intervenções e reduzindo a probabilidade de complicações associadas ao diagnóstico tardio. (PO)

 

Palavra de especialista

Novas terapias

O autismo é uma condição heterogênea que tem sido relacionada a fatores genéticos e ambientais, e pode ser classificado como de início mais precoce ou de mais tardio — neste segundo grupo, frequentemente associados a distúrbios de deficit de atenção e hiperatividade, entre outros transtornos. O que o estudo demonstra é que os dois grupos, conforme a idade de início dos sintomas, parecem ter bases genéticas distintas. Assim, a pesquisa ajuda a explicar que a variabilidade clínica do autismo está, pelo menos em relação à sua idade de início, relacionada a um conjunto de pequenas variações na constituição genética. O estudo dessas variantes, em que genes se localizam, qual seu papel no organismo, e como interagem com outros genes e com o ambiente poderá ajudar na compreensão do autismo, abrindo novas avenidas para a investigação de terapias para o TEA.

Roberto Giugliani, coordenador de doenças raras da Dasa Genômica

 

Paloma Oliveto Repórter sênior

Formada na Universidade de Brasília, é especializada na cobertura de ciência e saúde há mais de uma década. Entre as premiações recebidas, estão primeiro lugar no Grande Prêmio Ayrton Senna e menção honrosa no Prêmio Esso.