Ema Paulino, presidente da Associação Nacional de Farmácias (ANF) insiste que os farmacêuticos podem tratar infecções ligeiras e que, no Reino Unido, isso permitiu baixar o uso de antibióticos. Está expectante com o que a DGS vai revelar em matéria de alterações ao Programa Nacional de Vacinação e reconhece que o programa de dispensa de medicamentos hospitalares nas farmácias está muito aquém do previsto.
A campanha de vacinação sazonal contra a gripe e a covid-19 começou há cerca de uma semana. Como é que está a decorrer? As farmácias dispõem, nesta altura, de todas as vacinas necessárias?
Sim, de facto, este ano não existem constrangimentos no acesso às vacinas. As vacinas já se encontram praticamente todas em Portugal para a campanha de vacinação na sua totalidade.
E já foram administradas até agora cerca de 100 mil vacinas contra a gripe e aproximadamente 58 mil contra a covid-19. É o mesmo que no ano passado? Tem havido maior adesão?
Temos verificado uma menor adesão nesta fase inicial, o que, de certa forma, era expectável devido às temperaturas muito elevadas que se fazem sentir. Porém, dado o histórico de boa cobertura vacinal em Portugal, estamos convictos de que, mais uma vez, os cidadãos reconhecerão o valor destas vacinas, numa perspectiva de prevenção de complicações e de doença grave, e aderirão à campanha vacinal como fizeram nas duas últimas campanhas.
E nota-se ainda grande hesitação em relação à vacina contra a covid-19 ou isso já não acontece este ano?
A adesão à vacinação contra a covid-19 também é menor. Esta hesitação está muito associada, por um lado, a uma percepção de saturação das pessoas relativamente à toma da vacina e, por outro, à percepção de menor gravidade da doença, bem como à menor visibilidade da morbilidade e da mortalidade que ainda persistem. Mas é importante fazer a vacina para reforçar os anticorpos que, entretanto, foram sendo perdidos ao longo do tempo e que nos protegem contra as formas mais graves da doença.
O Programa Nacional de Vacinação está prestes a comemorar 60 anos. A DGS fez saber que tenciona proceder a uma grande reformulação do Programa de Vacinação para Adultos. As farmácias foram ouvidas? Em que consistirá essa reformulação?
Estamos expectantes quanto ao que será anunciado, certamente esta sexta-feira, mas parece-nos que iremos avançar para um reforço do tipo de vacinas que poderão ser integradas no Programa Nacional de Vacinação. Já existe um plano de vacinação para adultos contra o tétano e a difteria. Para pessoas com doenças crónicas faria todo o sentido protegê-las contra doenças como, por exemplo, a pneumonia ou a zona.
As farmácias deveriam depois poder administrar essas vacinas?
Neste momento, as farmácias podem administrar todas as vacinas que não integram o Plano Nacional de Vacinação. Se se entender que essas vacinas passem a integrar o Plano Nacional, não faz sentido retirar à população a possibilidade de continuar a ter acesso a elas nas farmácias.
As farmácias não podem, contudo, administrar a vacina da gripe a maiores de 85 anos. Acha que isso deveria mudar?
Sim, sem dúvida.
Em que ponto estão as negociações entre a Associação Nacional de Farmácias e o Governo para que as farmácias possam prestar outros serviços, nomeadamente no acompanhamento de doentes crónicos?
Temos reiterado a disponibilidade das farmácias para reforçar a sua proposta de valor em várias fases da vida das pessoas. Todos os dias entram nas farmácias portuguesas cerca de 580 mil pessoas. Cada vez que uma pessoa com doença crónica vai à farmácia, é uma oportunidade para avaliarmos se está controlada em relação à doença e, por essa via, ajudarmos a promover esse controlo, identificando casos em que a terapêutica não está a ser efectiva e encaminhando mais atempadamente para outro nível de cuidados, seja o centro de saúde, seja o hospital.
Mas existem formas de comunicar essa informação aos médicos?
Neste momento, não. Dispomos de um canal de comunicação aberto através da renovação da terapêutica, no qual conseguimos enviar algumas notas aos médicos, mas é um canal ainda em desenvolvimento. Fazemos, contudo, parte do grupo de trabalho que está a preparar o registo de saúde electrónico único do cidadão.
Os médicos não receberam bem a proposta de que as farmácias possam prescrever alguns medicamentos para patologias ligeiras. O caso das infecções urinárias foi o mais discutido e gerou polémica, com críticas da Ordem dos Médicos.
Há que ter cuidado com a terminologia. Os farmacêuticos não pretendem diagnosticar nem prescrever – são actos médicos, que respeitamos, e cada profissional de saúde tem as suas competências. Mas a verdade é que já existem situações clínicas ligeiras nas quais o farmacêutico avalia e dispensa determinados medicamentos. Noutros países – e não estamos a inventar a roda – existe a possibilidade de o farmacêutico alargar essa avaliação a mais situações clínicas, aplicando testes rápidos que podem ser realizados nas farmácias e, mediante os resultados, dispensar a medicação, evitando uma ida desnecessária ao médico. Temos, em média, 4,1 farmacêuticos por farmácia, equipas altamente qualificadas e disponíveis para realizar essa avaliação e comunicar, naturalmente, com o médico, referenciando sempre que seja necessária uma avaliação clínica.
Quando não temos esses medicamentos mais baratos, a substituição vai ser automaticamente por medicamentos mais caros
E concretamente, de que testes se trata?
Por exemplo, nas infecções urinárias ligeiras existem testes que podem ser feitos à urina e que indicam se se trata de uma infecção bacteriana. No caso das infecções respiratórias, também há testes rápidos que podem ser realizados na garganta, indicando se se trata de uma situação viral ou bacteriana. No Reino Unido, onde os farmacêuticos realizam esta avaliação, observa-se uma redução da dispensa de antibióticos, porque só são prescritos quando o teste é positivo.
O programa do Governo prevê o desenvolvimento de programas de promoção da saúde, prevenção da doença e literacia terapêutica. Há desenvolvimentos nesse sentido?
Sempre participámos em campanhas quando desafiados pelo Ministério da Saúde. Estamos agora em estreita colaboração com a Direcção-Geral da Saúde para participar na campanha de sensibilização da população elegível para se vacinar. Relativamente a outros serviços, como a possibilidade de as farmácias realizarem testes de despistagem do VIH e das hepatites, é algo que temos vindo a discutir com o Governo e esperamos integrar na rede de serviços. Há já um projecto-piloto em Cascais, que mostrou que a população que recorre às farmácias é diferente da que procura outras instituições: há uma percentagem mais elevada de migrantes e de pessoas que se testam pela primeira vez, porque não são utilizadores assíduos dos serviços de saúde.
Um dos programas muito desejados pelos doentes é a dispensa de medicamentos hospitalares em proximidade, que tem vindo a ser alargado. Quantas farmácias estão abrangidas neste momento?
Na realidade, existem mais de 2600 farmácias com capacidade para realizar estas dispensas. E, no sistema entretanto legislado, há aproximadamente 150 farmácias envolvidas, estando ainda a ser finalizados os desenvolvimentos informáticos que permitirão uma total integração e acompanhamento da pessoa que recebe a sua medicação em proximidade. Este processo está mais avançado na ULS de São João.
Por que razão não está a avançar como previsto nos restantes locais?
Por causa de desenvolvimentos tecnológicos ainda em fase de conclusão. Espera-se que, até ao final deste ano, estes sistemas informáticos estejam finalizados e que se possa caminhar para o número de utentes que poderão beneficiar desta medida, estimado em cerca de 150 mil.
E neste momento, quantos são?
Actualmente, cerca de 250 pessoas estão abrangidas, portanto, ainda muito aquém do número previsto de beneficiários.
Recorrentemente, fala-se da falta de medicamentos nas farmácias. No ano passado, mais de metade notificou a ausência de algum fármaco. Este problema mantém-se? Agravou-se?
Existe uma escassez de medicamentos a nível internacional, que afecta sobretudo países com características como as de Portugal – de menor dimensão e com preços mais baixos. Contudo, tem havido alguma estabilização quanto aos medicamentos em falta. Foram implementadas medidas positivas, como a possibilidade de as farmácias substituírem uma determinada dosagem em falta por outra disponível, mantendo a comparticipação.
É muito importante mantermos uma trajectória de adequação de preços, principalmente os mais baixos, para podermos garantir a sua viabilidade no mercado nacional. Nos últimos três anos, foi possível fazer aumentos modestos no preço dos medicamentos mais baratos e parece-nos ajuizado voltar a fazê-lo em 2026. Quando não temos esses medicamentos mais baratos, a substituição vai ser automaticamente por medicamentos mais caros. Não representa um encargo significativo nem para as pessoas nem para o SNS, mas pode resolver problemas e pode até representar poupanças a esse nível.
A falta de medicamentos para a diabetes, também usados na obesidade, continua a verificar-se?
Sim. Houve legislação que restringiu a prescrição a determinadas especialidades médicas, para garantir que as embalagens que chegam ao país são dirigidas sobretudo às pessoas com diabetes, que mais beneficiam destas terapêuticas. No entanto, consideramos que serão necessárias medidas adicionais, nomeadamente para assegurar uma distribuição equitativa por todas as farmácias do território. Estamos a trabalhar de perto com o Infarmed e com outros intervenientes do circuito do medicamento para garantir que isso acontece.
De que forma?
Propusemos uma ferramenta informática que valide que a prescrição médica corresponde a um doente elegível para comparticipação e que necessita efectivamente do medicamento nesse momento – ou seja, que não se trata de alguém que já o tenha adquirido noutra farmácia. Assim, o medicamento seria automaticamente dirigido para a pessoa no momento certo da dispensa.
Os gastos com medicamentos representam uma fatia muito importante da despesa do SNS. Tendo em conta a evolução dos preços, o que podemos perspectivar quanto à sustentabilidade do sistema?
Sabemos hoje que os medicamentos dispensados em farmácia representam, no total da despesa pública, menos 2,2 pontos percentuais do que representavam em 2014. Há, de facto, um aumento da despesa em medicamentos e dispositivos médicos dispensados em farmácia, mas sobretudo motivado pelo aumento do número de embalagens dispensadas. Na verdade, o SNS nunca realizou tantas consultas nem tantas cirurgias como actualmente.