A maneira como o binômio lado de dentro/lado de fora foi apresentado por Marcelle junto aos arquitetos e urbanistas do vão Anna Juni, Enk te Winkel e Gustavo Delonero, mais o presidente da União dos Moradores da Favela do Jardim Panorama, Welton de Oliveira Silva, em texto sobre o processo criativo de Acerca De, faz lembrar a tese das duas histórias defendida por Ricardo Piglia em seu ensaio sobre as formas breves, onde aprendemos que todo conto deve contar, no mínimo, duas histórias. “Um muro, assim como uma história”, escrevem a dez mãos, “tem sempre dois lados. Construção vertical, geralmente robusta, essa linha espessa é traçada no espaço quando se tem o objetivo de dividir.” O que ocorre é que, neste jogo de claros-escuros, contrariando a lógica de manifestação pela omissão do escritor argentino, o território do Panorama é relegado às sombras e invisibilizado a ponto de, no site da incorporadora JHSF, existir um mapa de projetos para a região que ignora a sua existência. Ou pior: ao ilustrar a cartografia com o que Anna Juni chama de “um grande vazio verde”, toma como certa a sua destruição.
Com a sagacidade para perceber que coisas que poderiam ser de outra maneira muitas vezes já o são, a artista e o coletivo se apropriam de um dos signos chave do “outro lado” – o muro, representação visual suprema do que a liderança comunitária da favela Viela da Paz e pesquisadora Tereza Arrais define como “apartheid social”, presente em quase todas as obras literárias acerca da opressão – para inverter a situação e, a partir de um mesmo solo, torná-lo fluído, maleável, acessível, comum. Um muro à disposição de quem está do lado de lá do olhar do espectador para quem a farsa da cidade se arma, e que diminui – arrefece, soçobra, desfaz-se, cai – à medida que a comunidade antes ocultada por ele cresce e se fortalece.
Distante do conformismo de tantas obras de arte pautadas pela denúncia, Acerca De é um trabalho conceitual, pois nos força, como espectadores, a conceber a imagem mental de algo ao mesmo tempo estável e fluído; um trabalho político, reverberando nos muros assassinos que costuram a fronteira mexicana dos Estados Unidos com o genocídio étnico em Gaza; e é um trabalho social, uma vez que impacta na realidade objetiva dos moradores do Panorama e suas necessidades.
Durante o tempo de escrita dessa vértebra, foram muitos os tijolos acrescentados ao prédio que sobe diante da minha janela no centro da cidade. Aos poucos, a paisagem vai sendo tomada, e novas sombras se formam sobre a rua. Nesse mesmo período, foi realizada uma retirada massiva dos tijolos que compõem Acerca De, todos empilhados em carrocerias, deixando como rastro uma longa linha no chão.
São Paulo e seus paradoxos: para alguns, construir equivale a destruir. Para outros, não. Para outros, destruir pode ser uma forma de construir.
1 Olga Tokarczuk, Correntes. Trad. Olga Baginska-Shinzato. São Paulo: Todavia, 2021