O PAÍS DO MEIO || Cheguei a Alcácer do Sal com o sol de frente, gruas a puxarem os céus e o rio a ensinar a paciência de quem vem devagar. Vim à procura de uma história de imigração — não sabia se de exploração ou de superação — e encontrei um sorriso inteiro, um braço tatuado de amor e uma voz que me disse assim, baixinho: “Vim passear, fiquei”

Alcácer do Sal (CNN Autárquicas 2025) – Cheguei a Alcácer do Sal quando o sol não me perdoa e o rio faz de estrada antiga.

O Sado corre aqui com a paciência dos antigos, água castanha de brilho calmo. Nas margens, a cidade sobe por escadas de ferro e rampas de cimento — o que primeiro encontrei não foram enxadas nem foices, foram gruas a puxar o céu pelos cabos, torres de andaimes a morder fachadas, o contorno de prédios novos a crescer como se as plantas quisessem ser árvores e os homens lhes tivessem dado pressa. Alcácer em obras é um país em miniatura: à superfície passam turistas de chapéu largo e cão à trela, por baixo trabalha um motor que não cessa — o motor fala línguas africanas nas frentes de obra, hindi e nepalês entre prateleiras, balcões e searas, português com um rasgo de Brasil em toda a parte. E fala tétum ao cair do dia, quando a luz desce e a videochamada põe Timor à mesa. 

Vim à procura de uma história de imigração — não sabia se de exploração ou de superação, sabia que há das duas — e a sorte levou-me ao Francisco. A sorte dá muito trabalho, dispenso-vos do mapa da procura, digo só que ainda bem que o encontrei. Setembro decidiu repetir julho. O calor não pedia licença. Entrava e tomava lugar. A margem brilhou como se alguém lhe tivesse passado um pano húmido. O jardim da margem guardava sombra certa: bancos de madeira a cheirar a tardes sentadas, crianças a correr atrás do próprio riso, o rio a segurar o som por baixo das frases. Um cão dormia rendido ao calor, o fôlego a tocar baixo. Sentei-me aí, à espera de que o dia pousasse.

O Francisco chegou pequeno, costas direitas — a Maria ao lado, sorriso inteiro, a escuta paciente de quem se senta bem no silêncio. Não vieram sós, entraram com uma coisa que não se vê logo: um entusiasmo de quem está inteiro e com um sossego de quem sabe que o resto se arranja, que nasce dos olhos e só depois vem à boca. “O meu nome é Francisco Cruz, sou timorense, tenho 30 anos. Cheguei a Portugal a 19 de maio de 2022. Vim com os meus irmãos, para passear. Gostei… fiquei. Lisboa coube toda em duas semanas, porque Lisboa também é um verbo que pede dinheiro: “Sem trabalho é difícil”. Portanto, a história de Francisco vai começar aqui: havia gente sua em Alcácer, havia promessa de trabalho, havia o telefonema que encurta oceanos — “vem, há lugar”. O primeiro emprego foi no Intermarché, no talho, aprendeu a lâmina como se aprendem contas, mão a mão, olho a olho… “Eu não era talhante, aprendi ali — como cortar carne, como atender, como dar conta do balcão. Gosto. Gosto mesmo.” O gosto saiu-lhe como saem as coisas que não precisam de defesa. Hoje está no Mercado Municipal — entre uma pá e um borrego inteiro há um homem a ganhar pertença, a afiar a biografia.

Eu esperava uma cidade de arroz a espelhar céu. Eu vinha por arroz e encontrei estaleiro — e o arroz lá está, campos em losango, água a mandar no calendário, garças plantadas em silêncio. O postal é inteiro: há o castelo a segurar o perfil, mas a cidade que mexe vive do barulho das obras, das carrinhas que encostam onde o branco ainda não secou, dos grupos que entram cedo com capacete e regressam com a tarde colada aos ombros, de uma língua de muitas línguas que aprendeu uma gramática prática — trabalhar, cobrir, levantar, pagar, recomeçar.

Francisco conta-me de Timor devagar, como se o nome trouxesse mar agarrado. “Era engenheiro civil, estudei uns sete anos na Indonésia — acabei o curso e trabalhei — mas aqui…”, e o gesto fecha a frase, “a vida é aqui.” Pousa engenheiro ao lado de talhante, sem hierarquia. Pergunto-lhe pelo desvio. Ele devolve-me um cálculo que não precisa de Excel: “O que ganho no talho em Portugal é mais do que um engenheiro em Timor. Qualquer trabalho que tu podes fazer, fazes.” A voz não pede aplauso, quer avanço — a frase fica no caderno direita como um sulco. 

Primeiro veio ele, Francisco. A família, mais família, chegou a seguir, em fila certa, entre 2023, 2024. “O patrão confiou em mim, perguntou se eu conhecia pessoas para trabalhar, disse que sim, os irmãos, e vieram quase todos.” Antes de pisarem a cidade já havia casa: “seis quartos por 750 euros” — no papel é uma soma, no corpo é um milagre doméstico. Agora o milagre reduziu a escala. Vive com a Maria e com o filho. “Levi Luiz” — a cara muda de luz. “Nasceu a 19 de junho de 2024, foi batizado na igreja, somos católicos, em Timor quase todos são, é tradição, fé.” Deus fica dito sem pose, como quem fala de um amigo que ficou no encosto: “Está atrás de mim.”

A cidade pede volta. Fomos até ao coreto, colunas a fazer a sombra, escadas caiadas, a chamar assento e chamar conversa. Francisco encosta os punhos ao corrimão, corpo inteiro em descanso atento, olhar aberto para a praça. O coreto não é só palco. O coreto é moldura. Passa gente e passam nomes — há quem o chame “Francisco”, há quem diga “Alfe” de mais ao longe —, e ele responde igual, um aceno só, inteiro nos dois nomes. 

A certa altura mostra os braços. Primeiro o pé pequeno, tatuado, e ao lado “52 cm”, a régua da vida a começar à vista. Depois a Maria em traço fino, o retrato de quem estava sentada ao lado a segurar a sombra com um sorriso. Mais acima, outra inscrição: “Alfe — Dalan Nakukun”. Pergunto-lhe o que é, o que significa. “É… alcunha, artística: Alfe. E o nome de uma canção que compus, significa caminho às escuras.” Primeiro vai o corpo, depois a luz. Francisco puxa do telemóvel, abre um vídeo lá, o Sado em crepúsculo, quatro sombras que são quatro irmãos, uma voz em tétum a sair do corpo como atalho para casa, com aquela doçura das línguas que se usam para dizer casa. No fim, um riso envergonhado de quem confirma “sou eu, sou” — o braço serve de pauta, o nome serve de refrão. “Tu podes chamar-me Alfe.”

No meio desta ternura a vida pede papel. “Em 2022 ainda dava para tratar vindo com visto de turista — NIF, Segurança Social, contrato —, foi fácil, graças a Deus; agora está mais difícil.” Deixa a regra sem pregão: “Tem que ser legal, trabalhar, fazer descontos — é bom para quem vem e bom para o país.”

Há um episódio que entrou pela porta de serviço. Uma cena de balcão que chega em voz baixa, que pesa o dobro por ser pequena. No talho, uma senhora aproxima-se, olha para o avental, olha a pele, pediu outra pessoa. “Não quis ser atendida por mim — disse que queria ‘aquela senhora’. O meu irmão ofereceu-se — ‘atendo eu’ — e ela ‘não, vocês os dois não’.” A frase podia ter-lhe ferido o orgulho, mas ele escolhe outra lâmina para responder. Chamou a colega. Continuou a trabalhar. Voltou a tentar atender a senhora noutra ida ao talho. Ela recusou. Ele agradeceu sem que lhe coubesse agradecimento. E outra vez. E outra. A frieza cansou-se de si. “Hoje ela já é quase amiga.” A cena acaba sem revanche, acaba com método. Em Alcácer o racismo existe. Passa baixo. Às vezes desfaz-se com um bom dia que não desiste, insiste até ser rotina. 

Pergunto o que sabia ele de Portugal antes deste Portugal — ri-se. “Só sabia ‘Porto’ — achava que era capital.” Em Timor, na escola, aprendeu sobretudo tétum, menos português. Em Portugal afiou português no talho, de ouvido no balcão, e apanham-se expressões, ficam no bolso: “Ó pá, o fixe.” Traz brasileirismos no sotaque. O sotaque é um mapa de viagens. E com os colegas se aprendem depressa as palavras que vêm antes mesmo do dicionário: “Foda-se! Foda-se…” A língua deixou de ser de visita — ganharia residência.

Volto à cidade para a pôr dentro do texto. Um homem, velho, de bicicleta passou a cortar o ar como se abrisse uma fenda no calor. Um aviso amarelo repete “ENTRADA E SAÍDA DE VIATURAS” — retrato sem legenda daquilo de que Alcácer vive agora, como se a imigração precisasse de tradução. No arrozal a garça pratica disciplina sobre uma perna só. O país olha muitas vezes para Lisboa quando quer saber como vai; Alcácer também responde.

Voltámos a sentar-nos num banco, a sombra muda de sítio e mudamos com ela. Francisco fala do dinheiro como quem fala de ferramentas — serve para fazer, não para exibir, usa-se para erguer a vida. Em Timor o salário mínimo “fica pelos cento e qualquer coisa”. Em euros. “Aqui o talho paga-me melhor do que o curso de engenharia pagava lá.” Ganha e guarda, ganha e constrói, ganha e manda. “Todos os meses mando dinheiro para os meus pais, é a minha responsabilidade.” Não disse que era obrigação. Disse que era responsabilidade, dele. Há obrigações que Francisco não delega. Pergunto pelo momento mais difícil aqui — “a casa”. Ele e a Maria procuraram de março a outubro. “Ela estava grávida.” O tempo apertava e as portas fechavam devagar. Por racismo? “Já não importa.” Pergunto pelo melhor daqui — não precisava de pergunta. “O nascimento do Levi.” Muda-se-lhe o rosto. O jornalismo por vezes tenta traduzir o indizível. Aqui não vale a pena.

Fica a faltar o verbo do futuro — ficar. Um dia regressarão de férias a Timor “para que o Levi conheça os avós” — e o cheiro da terra depois da chuva, acrescento eu. “Voltar de vez está longe.” O que sonha para o filho? Duas respostas como dois bilhetes de lotaria e o mesmo sorriso a rasgá-los: “Cantor. Senão futebolista.” Se for a primeira, o coreto espera. Se for a segunda, o rio guarda espaço e luz mansa para a bola correr. E se for outra, o coração tem espaço.

O dia já abranda, o calor por aqui desaperta, as gruas ficam de braços estendidos a apontar para lado nenhum, o gancho a baloiçar um nada. Um grupo de trabalhadores atravessa a rua com os capacetes na mão, o cão muda-se para outra sombra. Caminhamos pela marginal. O Francisco leva cumprimentos como quem leva pão — “Francisco” de perto, “Alfe” ao longe. O homem que estudou sete anos para desenhar pontes vai construindo pertenças ao ritmo do balcão — corte limpo, a palavra é que fica. A cidade continua em construção — ele também. A Maria ri como riu toda a tarde.

Encosto-me à margem e deixo a cidade passar devagar. Lembro-me de quem chega e de quem fica; de quem manda dinheiro todo o mês para a mãe comprar o que falta em casa; lembro-me de quem aprende outra profissão porque a vida pede ou a vida dá; de um curto vídeo guardado no telemóvel, uma canção em tétum e um país que cabe dentro de outro; lembro-me de uma tatuagem com 52 cm e sem tamanho; do talho onde um “bom dia” insistente é um gesto político ou quase. Só depois volto à estrada. A cidade fica-me à direita — feita de obras e pertença de arrozais, com turistas só de passagem e imigrantes que ficam e não cabem num plural, porque têm nomes. Amanhã o Francisco está de novo no mercado. Vou chamar-lhe Alfe. Amanhã o Alfe vai decerto encontrar-se com os irmãos e cantar. Eu fico com a sensação de ter ouvido uma história contada devagar, daquelas que assentam. Não sei se foi superação, não sei se ficou exploração por dizer. Fico com isto: cortar hoje, cantar mais logo — entre os dois, a vida. 

Avançamos, vamos por dentro. 

O País do Meio não é um roteiro, pelo menos não turístico. Esta é uma série de 14 reportagens de Tiago Palma, para ler na CNN Portugal. De Trás-os-Montes ao Algarve, o jornalista desce a Estrada Nacional 2 e recolhe os retratos — íntimos, sabedores e naturais — de quem é das cidades, ou mais dos lugares, que a EN2 atravessa. Não são histórias de alcatrão, são histórias do caminho, do país real, ouvindo a voz de quem não é notícia — mas é um país, ou faz um país. Na antecâmara das Autárquicas de 2025, o pulso mede-se sem cartazes, sem promessas eleitorais, sem corta-fitas, sem política; o pulso mede-se como mediu Miguel Torga: “Cultivo-me pelos olhos e pelos pés, no alfabetismo íntimo das coisas”.

O País do Meio não é um roteiro, pelo menos não turístico. Esta é uma série de 14 reportagens de Tiago Palma, para ler na CNN Portugal. De Trás-os-Montes ao Algarve, o jornalista desce a Estrada Nacional 2 e recolhe os retratos — íntimos, sabedores e naturais — de quem é das cidades, ou mais dos lugares, que a EN2 atravessa. Não são histórias de alcatrão, são histórias do caminho, do país real, ouvindo a voz de quem não é notícia — mas é um país, ou faz um país. Na antecâmara das Autárquicas de 2025, o pulso mede-se sem cartazes, sem promessas eleitorais, sem corta-fitas, sem política; o pulso mede-se como mediu Miguel Torga: “Cultivo-me pelos olhos e pelos pés, no alfabetismo íntimo das coisas”.

Esta é uma série de 14 reportagens de Tiago Palma, para ler na CNN Portugal. De Trás-os-Montes ao Algarve, o jornalista desce pela Estrada Nacional 2 e recolhe retratos íntimos de quem é destes lugares

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