Filha única, tinha 22 anos quando pais adoeceram. Foram 12 anos de aprendizados, que resultaram na obra ‘Uma casa que não pode cair’. Júlia já devorou livro da mulher de Bruce Willis, sobre demência
A geração sanduíche – que acumula a responsabilidade de cuidar dos filhos, do trabalho, da casa e, ao mesmo tempo, dos pais envelhecendo – revela números preocupantes. De acordo com a pesquisa Cuidadores do Brasil, quase um terço dos cuidadores sofre de insônia e dores no corpo, 73% reclamam de viver sob estresse e 82% lamentam ter engavetado os seus projetos pessoais para dar conta do recado e 29,40% não possuem projetos de vida para o momento após a passagem do idoso que vivia sob a sua responsabilidade. A sobrecarga é tamanha que muitos acabam adoecendo também, física e mentalmente. Você pode acessar a pesquisa no site do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
A companheira do ator Bruce Willis, Emma Heming Willis, publicou um livro de memórias e reflexões a partir de sua experiência como cuidadora do marido, que sofre de demência frontotemporal. Lá fora, o livro saiu pelo The Open Field, selo da Penguin Random House. Interessou? Boas novas: o livro será lançado este mês no Brasil. O rumo inesperado: Como recuperar a força, a esperança e se reencontrar na jornada do cuidado poderá ser lido em português através do selo BestSeller, da Editora Record, com tradução de Rita Paschoalin e Cláudia Mello Belhassof. A obra está em pré-venda na Amazon e chegará às prateleiras no próximo dia 6.
É de um lugar bem semelhante que a escritora Júlia Jalbut fala. Filha única, ela tinha apenas 22 anos quando a mãe recebeu um diagnóstico de câncer e o pai sofreu um infarto. Foram 12 anos de consultas, internações e aprendizados, que resultaram no livro Uma casa que não pode cair (Editora Planeta). Elogiada por referências no assunto, como o psicólogo e escritor Alexandre Coimbra Amaral e a médica geriatra, especialista em cuidado paliativo, e escritora Ana Claudia Quintana Arantes – autora do fundamental A morte é um dia que vale a pena viver, que está beirando as 900 mil cópias vendidas, segundo dados atualizados da assessoria de imprensa da Editora Sextante –,a obra amplia o debate sobre o cuidado, o adoecimento e o luto — temas áridos que, nos últimos anos, vêm ganhando espaço na literatura e nas rodas de conversa mundo afora.
Júlia já leu o livro de Willis. “Ela fala sobre a experiência dela de cuidadora e enfatiza a importância do cuidador cuidar de si mesmo, que é algo que eu também falo no meu livro. A experiência dela começou em 2023, então é um tempo mais curto, o que não quer dizer que não seja intenso. E ela foca numa demência específica, a demência frontotemporal, que não é muito abordada na imprensa nem nas conversas. Em geral a gente fala mais de Alzheimer e Parkinson, e ela traz muita informação sobre esse tipo de demência”, adianta a autora paulistana. Leia a entrevista na íntegra:
PUBLISHNEWS – O cuidado familiar é visto como expressão de afeto. Na prática, quais são as armadilhas dessa visão idealizada? Como é possível lidar com o peso dessa responsabilidade sem cair na culpa? A carga sobre as mulheres costuma ser maior, não é?
JULIA JALBUT – O ato de cuidar (de pais, filhos, alunos, pacientes) é facilmente idealizado. Costumamos associá-lo ao amor, ao afeto, à compaixão. Mas é importante lembrar que cuidar também é cansativo, pode trazer emoções intensas, pode exigir muito mais do que temos: emocional, financeira, fisicamente. Não é simples cuidar dos pais que envelhecem e isso se dá por muitos motivos: porque há uma história prévia (e nem sempre é uma história simples ou feliz), porque é menos gratificante cuidar de um adulto em comparação a cuidar de uma criança, e porque em última instância envolve deparar-se com nossa própria finitude (para citar apenas três). Para que o cuidar seja mais leve, é importante poder acolher as luzes e sombras dessa experiência. Saber que não há nada de errado em desejar estar perto e também querer fugir.
E, sim, 80 ou 90% das pessoas que cuidam dos pais são mulheres. E as mulheres estão exaustas, ficam doentes, e muitas não topam mais que esse trabalho invisível, não-remunerado, pouco valorizado recaia sobre elas, apenas. Há quem diga que nós, mulheres, temos mais facilidade para o cuidado, mas seja isso biológico, cultural ou uma mistura de ambos, pouco importa. Mulheres cuidam e homens também podem cuidar. Precisamos falar sobre isso, tanto para aliviar a carga das mulheres, como também para acolher os 15 por cento de homens cuidadores, que se sentem isolados e estigmatizados, como se, ao exercessem esse papel, tivessem sua masculinidade abalada.
PN – A experiência de cuidar costuma trazer uma mistura de afetos contraditórios. Como reconhecer e atravessar essa convivência entre amor, gratidão e, ao mesmo tempo, raiva, tristeza ou culpa? O novíssimo livro da Emma Willis, mulher do ator Bruce Willis, que enfrenta uma demência frontotemporal, fala sobre isso?
JJ – O cuidado pode fazer aflorar amor, compaixão, gratidão, e ao mesmo tempo despertar raiva, tristeza, culpa. Não é fácil lidar com essa avalanche de sentimentos, sobretudo em uma cultura que tende a dividir o mundo em binarismos: bom e ruim, luz e sombra, certo e errado. Quando sentimos algo que foge daquilo que é considerado ideal, facilmente surgem culpa e angústia e, com eles, mais sofrimento. Por isso é tão importante falarmos sobre essa experiência. Cuidar de alguém é um grande convite a aprender a conviver com emoções ambivalentes. Acho valioso se permitir sentir e expressar o que surge, com menos vergonha e mais autocompaixão. Saber que não é falta de amor sentir raiva; não é falta de esperança ficar triste. Somos humanos e nossos afetos são complexos. Outro caminho interessante – que inclusive foi o tema do meu TCC na pós em Luto que fiz no Instituto 4 Estações – é a arte: o contato com livros, filmes, artes plásticas ajudam muito. Quando alguém compartilha sobre o que sente, muitas pessoas saem de um lugar de inadequação e descobrem que não estão sozinhas. A arte é uma forma poderosa de conhecer histórias diferentes, mas ao mesmo tempo muito parecidas com a nossa.
O livro da Emma Willis fala sobre a experiência dela de cuidadora e enfatiza a importância do cuidador cuidar de si mesmo, que é algo que eu falo também no meu livro. A experiência dela começou em 2023, então é um tempo mais curto, o que não quer dizer que não seja intenso. E ela foca numa demência específica, a demência frontotemporal, que não é muito abordada na imprensa nem nas conversas. Em geral a gente fala mais de Alzheimer e Parkinson, e ela traz muita informação sobre esse tipo de demência. É um livro bem informativo, que dialoga com o meu. Vale a pena conhecer também!
PN – Quais práticas e apoios foram decisivos para que você conseguisse atravessar esse período de cuidado intenso dos teus pais sem perder a conexão consigo mesma?
JJ – Contei com muitas ajudas ao longo do caminho para conseguir cuidar de mim. Fiz terapia e isso me ajudou muito a expressar minhas emoções, acolher e nomear o que sentia num espaço seguro e livre de julgamentos. Rapidamente percebi que só a terapia não daria conta e comecei a me abrir com alguns amigos e família. Construir uma rede de apoio é crucial neste processo. É importante lembrar que isso não se dá de uma hora para outra: é aos poucos que vamos encontrando as parcerias que podem nos apoiar nesse processo. Também pratico yoga e meditação há muito tempo e, através delas, desenvolvi uma intimidade comigo mesma, o que me ajudou muito a reconhecer minhas necessidades e a me conectar com meus recursos internos. Aprendi a reconhecer o que me dava força; o que me afastava de mim; quais eram meus limites. E, por fim, escrevi o livro Uma casa que não pode cair, a partir da experiência que tive com os meus pais. O câncer da minha mãe, o infarto de meu pai e as sucessivas internações e complicações que cada um viveu chacoalharam nossa casa como um terremoto interminável. Daí o nome do livro. Ora grau 1 – quase imperceptível, porém inegavelmente presente –, ora grau 9, derrubando tudo o que estava de pé. Rachaduras começaram a se abrir pelas paredes, o chão por vezes parecia faltar. Em meio a esse caos, eu fui para o centro. Filha única, 22 anos e saudável, parecia caber a mim ser forte e dar conta do recado. Ao longo do tempo, aprendi muitas coisas: que precisava cuidar de mim e também receber cuidados; que vulnerabilidade não é fraqueza; que estar ao lado de alguém que amamos e adoece é duro, mas também pode trazer muitas oportunidades. Minha experiência pessoal é o ponto de partida para abordar os temas universais que emergem quando nos deparamos com a finitude e impermanência.