Foto: Divulgação/Arquivo pessoal
Thais VillaNeurologista especialista no diagnóstico e tratamento da enxaqueca
A enxaqueca é uma das doenças mais comuns e incapacitantes do mundo, atingindo mais de 1 bilhão de pessoas globalmente — e cerca de 30 milhões apenas no Brasil, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Ela impacta profundamente a vida de quem sofre com crises frequentes de dor, causando queda de produtividade, perda de dias de lazer e trabalho e uma piora geral da qualidade de vida. Em geral, o quadro é associado à vida adulta, mas uma nova pesquisa mostra que os sinais da doença podem surgir já na infância, reforçando a importância do diagnóstico precoce.
Para esclarecer dúvidas sobre o quadro e falar dos avanços no tratamento, o Estadão conversou com a neurologista Thaís Villa, doutora pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), pós-doutora pela Universidade da Califórnia (UCLA) e idealizadora do Headache Center Brasil, em São Paulo, a primeira clínica multiprofissional do País dedicada exclusivamente ao diagnóstico e tratamento das dores de cabeça e da enxaqueca.
Como surgiu o interesse de se especializar nessa área de dor de cabeça e enxaqueca?
Nunca tive uma dor de cabeça, nem tenho parentes ou pessoas próximas que tenham enxaqueca. Mas foi pesquisando e trabalhando a fundo a doença que tive a chance de estudar o cérebro, unindo neurologia, psiquiatria, questões do sono, humor, farmacologia, enfim, contemplava tudo o que eu, desde criança, sempre quis estudar. Em 2004, na residência médica pela Unifesp, comecei a estagiar no setor de cefaleias da instituição e a atender pacientes com enxaqueca. Mais do que ajudar essas pessoas a ter qualidade de vida por meio do diagnóstico e tratamento adequados da doença, encontrei minha verdadeira paixão profissional.
No mesmo ano, com o levantamento de prontuários dos casos de pacientes que sofriam de cefaleias crônicas diárias, participei do meu primeiro Congresso Brasileiro de Cefaleia, que acontece anualmente e seria realizado em Curitiba. Sem recursos financeiros para a viagem, enviei minha pesquisa para avaliação da Sociedade Internacional de Cefaleia. Ela foi aprovada e recebi patrocínio para a apresentação no evento.
Após concluir o período de residência médica, em 2006, iniciei mestrado na Unifesp e minha pesquisa, pelo ineditismo que tratou o déficit de atenção em crianças com enxaqueca, rendeu publicação na mais importante revista sobre cefaleias do mundo, em 2009. Com o mesmo estudo, conquistei o título de doutorado em Neurociências dois anos mais tarde. Já em 2013, veio a oportunidade de estender a pesquisa sobre a relação da enxaqueca e tonturas em pós-doutorado na UCLA, em Los Angeles, nos Estados Unidos. Nesse país conheci os centros de tratamento da enxaqueca, os headache centers.
De volta ao Brasil, em 2014, uni a paixão pelo cérebro com a visão empreendedora e iniciei a preparação da estrutura física daquele que seria o primeiro centro de tratamento multidisciplinar para pacientes com enxaqueca do País, formando uma equipe de profissionais especializados na doença em programa de pós-graduação da Unifesp. Já em 2016, inaugurei o Headache Center Brasil, em sociedade com o meu marido, que também é médico, e mais três profissionais. Nove anos se passaram e ainda não há no Brasil outra clínica com igual estrutura e número de especialidades atuando 100% no tratamento da enxaqueca e com o mesmo protocolo de atendimento.
Muita gente confunde enxaqueca com dor de cabeça comum. Como diferenciar? Há tipos diferentes de enxaqueca?
A dor de cabeça é sempre sintoma de alguma doença. A enxaqueca é uma doença! A enxaqueca é uma doença neurológica, hereditária, crônica e que tem como um dos sintomas a dor de cabeça. Importante ressaltar que não existe dor de cabeça normal, porque esse é um sintoma de alarme de que algo está errado no organismo.
Não existem tipos de enxaqueca. A evolução da doença é conhecida como “enxaqueca com aura”. As auras são sintomas neurológicos como alterações visuais, flashes, pontos escuros e luminosos, embaçamento visual ou mesmo perdas momentâneas de audição ou olfato. Ou seja, a aura é um dos variados sintomas que a enxaqueca pode apresentar, mas não é o único.
Enxaqueca é uma doença e exige tratamento Foto: Vitalii Vodolazskyi/Adobe Stock
Existe algum grupo mais suscetível à enxaqueca?
As mulheres sofrem mais com a enxaqueca, são as mais debilitadas pela doença e apresentam crises de dor de cabeça muito mais severas, duradouras e frequentes. Isso acontece por questões hormonais: a mulher apresenta o estrogênio em grande quantidade, um facilitador das dores. E principalmente as mulheres em idade fértil, da adolescência até os 50 anos (sofrem mais). Porque é um período em que elas estão expostas a níveis de estrogênio mais elevados e muitas ainda fazem uso da pílula anticoncepcional como principal método contraceptivo. A maioria (das pílulas) tem combinação de estrogênio e progesterona, uma verdadeira “bomba” que aumenta o risco para AVC em 15 vezes em mulheres que sofrem com enxaqueca.
O que pode disparar as crises?
Por ser uma doença genética, a única causa para a enxaqueca é a hereditariedade. Porém, gatilhos podem desencadear crises, como mudanças bruscas de temperatura, estresse, exposição à luminosidade forte, sons muito altos e cheiros fortes.
A dor de cabeça é sempre sintoma de alguma doença. A enxaqueca é uma doença!
Thais Villa, neurologista especialista em enxaqueca
Recentemente, você apresentou uma pesquisa que mostra que os sinais do problema podem começar na infância. Pode dar mais detalhes?
Sim, sobre a relação de cinetose e enxaqueca. A cinetose é conhecida como “mal do movimento”, um enjoo que as crianças sentem ao se deslocarem de carro, barco ou em brinquedos que giram. O estudo foi conduzido com 780 pacientes em tratamento da enxaqueca crônica no Headache Center Brasil entre agosto de 2020 a abril de 2025. Do total, 73,6% relataram histórico de cinetose quando criança, indicando o distúrbio do equilíbrio como um sintoma precoce da enxaqueca, que aparece já na infância e evolui para tontura crônica na fase adulta.
O resultado representa um avanço importante para o diagnóstico e tratamento da enxaqueca. Quanto antes a doença, com seus gatilhos e sintomas, for corretamente manejada, menos impacto o paciente terá no seu dia a dia. Ele pode levar uma vida livre de dores e com muito mais qualidade, como deve ser.
A pesquisa foi divulgada pela primeira vez no início de setembro, durante o 22º Congresso da Sociedade Internacional de Cefaleia, em São Paulo. O estudo foi premiado entre os melhores temas apresentados no congresso.
Quais são as principais estratégias de tratamento?
O tratamento 360º é considerado uma revolução no cuidado da enxaqueca e o que há de mais moderno no controle da doença e das crises. O grande diferencial é o foco no paciente como um todo, dando atenção a todas as variáveis dessa doença tão complexa. Ele é manejado por profissionais de saúde de diversas áreas, especializados na doença. Dessa forma, é possível orientar e tratar sintomas ligados à neurologia, odontologia, nutrição, fisioterapia, medicina de procedimentos. O acompanhamento psicológico também é fundamental, especialmente no processo de aceitação da doença, para a continuidade do tratamento e para o enfrentamento do período de abstinência de analgésicos e alimentos estimulantes, que são cronificadores da enxaqueca.
Uma das grandes descobertas no tratamento preventivo da enxaqueca crônica, com resultados cientificamente comprovados, é a aplicação da toxina botulínica, popularmente conhecida como botox. A substância bloqueia a liberação de certos neurotransmissores responsáveis por levar a informação da dor ao cérebro. O tratamento também utiliza medicamentos produzidos a partir de anticorpos monoclonais anti-CGRP, com bom perfil de tolerabilidade e quantidade de efeitos colaterais bastante baixa, que cuidam de diversos sintomas da doença.
Quais hábitos do dia a dia podem ajudar a prevenir ou reduzir as crises?
As crises de enxaqueca podem ser controladas por meio do tratamento integrado, com orientações para que os gatilhos citados anteriormente sejam evitados e também desintoxicando o organismo do consumo excessivo de analgésicos e anti-inflamatórios, que são remédios para dor e não para o tratamento da enxaqueca. Pelo contrário, eles mascaram a doença. Ao longo dos anos, o uso indiscriminado desses medicamentos leva à cronificação da enxaqueca, levando a crises mais frequentes e intensas.
Qual a relação entre alimentação e enxaqueca? Ela pode tanto desencadear como ajudar na prevenção de crises?
A principal característica da enxaqueca é o cérebro hiperexcitado. Por isso, o consumo de alimentos estimulantes vai fazer com que o órgão de comando do nosso corpo, que já é extremamente excitado na pessoa com enxaqueca, entre em sofrimento, provocando dores intensas.
Por isso, evitar alimentos estimulantes pode ajudar na prevenção de crises, como café, cacau (chocolate), cupuaçu, refrigerantes de cola e guaraná e a erva mate. Alimentos termogênicos, como pimentas mais fortes, gengibre, canela e cúrcuma, também devem ser evitados.
O que não deve ser feito durante uma crise?
Não se deve fazer a automedicação para dor, com o uso contínuo de analgésicos e anti-inflamatórios. Enxaqueca não tratada pode causar a cronificação da doença, fazendo que as crises fiquem mais frequentes e intensas. Isso leva a pessoa a fazer uso excessivo de medicamentos que, além de não tratarem a doença, aumentam o risco de sintomas de ansiedade, depressão, distúrbios de sono e dificuldades de atenção e memória. E, em casos de enxaqueca com aura, há aumento no risco de AVC e infartos.
E de que maneira essa enxaqueca com aura eleva o risco de AVCs e infartos?
Isso acontece por dois mecanismos. Em primeiro lugar, a enxaqueca favorece um fenômeno de vasoespasmo ou vasoconstrição, que é estreitamento de vasos, tanto cerebrais como cardíacos e de outras regiões do corpo. Além disso, a enxaqueca pode alterar a coagulação da pessoa e facilitar a formação de trombos. Os trombos podem chegar aos vasos sanguíneos, fechando a passagem e diminuindo o aporte de sangue. Isso pode resultar em um infarto ou AVC isquêmico. O AVC que a enxaqueca facilita é sempre o isquêmico, por falta de circulação sanguínea.