Por dia já chegaram a receber mais de 60 denúncias, mas a falta de meios não lhes permite chegar a todo o lado. A história do IRA começou há quase 10 anos. Estávamos em 2016 quando Tomás Pires foi confrontado com a história de Kira. Em entrevista à SIC Notícias, recorda que o animal se encontrava “numas instalações devolutas, ocupadas indevidamente por pessoas que lá pernoitavam”.

Tomás, agora presidente da direção do Núcleo Intervenção e Resgate Animal (IRA), trabalhava na altura nas instalações periféricas. Dava ração e algum dinheiro a um senhor que ali vivia com dois animais. Um dia, ao ir de férias, foi informado que ele tinha arranjado um terceiro cão.

“Não fiquei muito contente porque era eu que o auxiliava com dinheiro e alimentação para os animais e ele foi arranjar um terceiro cão. Quando cheguei de férias, desloquei-me às instalações onde o senhor pernoitava com esses animais e verifiquei o estado da Kira”, relembra Tomás.

E pela primeira vez deparou-se com uma realidade que, até aquele momento, era-lhe desconhecida. “[Para mim] quem tivesse um animal, tratava-o condignamente (…) e ali encontrei uma cadela esquelética, acorrentada, no meio da urina e das fezes, completamente prostrada, e aquilo mexeu emocionalmente comigo. Retirei a cadela e chamei as autoridades policiais.

Fotografia de Kira, a cadela que foi o primeiro animal a ser resgatado pelo IRA

SIC Notícias

Depois de Kira seguiram-se muitos mais. O núcleo conta atualmente com mais de 60 colaboradores, entre funcionários e voluntários, e três delegações – Lisboa, Porto e Açores. Esperam até ao final do ano chegar ao Algarve.

IRA recebe dezenas de denúncias por dia

É na clínica que os animais recebem todos os cuidados necessários até serem encaminhados para abrigou ou famílias de acolhimento temporário. Alexandra D’Ávila, médica veterinária, explica à SIC Notícias que as queixas normalmente chegam devido a situações de negligência ou maus tratos

“Lembro-me de um animal que chegou muito debilitado. Já não andava, os donos supostamente batiam-lhe. Nunca recuperou a marcha totalmente, mas foi para uma família de acolhimento temporário que trataram muito bem dele. E, portanto, os últimos meses de vida foram meses em que ele teve o carinho e o tratamento que provavelmente não teria tido se continuasse onde estava”.

Mas como esta história, há muitos mais. Tomás relembra a história de Mel, uma cadela que acabou por morrer devido à total negligência. “Não conseguia levantar-se para comer nem para beber água. Estava caída no chão da sala do seu detentor que diariamente se sentava no sofá ao lado dela a ver televisão e a cadela definhava à fome e à sede à frente dele”. O dono foi condenado a pena suspensa e ao pagamento de pouco mais de mil euros.

As intervenções acontecem em todo o país. Este ano, nos incêndios, resgataram em apenas seis dias centenas de animais. Mas as ações acontecem também além-fronteiras, com a realização de operações em cenários de catástrofe como aconteceu em Valência e no sismo na Turquia, ou em zonas de conflito como na Ucrânia.

“Orgulho-me de dizer que fomos das primeiras entidades portuguesas a chegar à zona da fronteira na Ucrânia. Fomos recolher pessoas a quem estava a ser recusado o transporte porque queriam trazer os seus animais. (…) Quando tivemos conhecimento dessa situação, mobilizamos imediatamente os nossos meios e recolhemos essas famílias e os seus animais de companhia.”

“Todos os resgates são um desafio”

O IRA recebe, por dia, dezenas de denúncias. Podem, por um lado, ser situações que envolvem animais acidentados por queda, intoxicação ou atropelamento. E nesses casos, existe uma linha telefónica com os bombeiros de Camarate onde está alocada uma ambulância de socorro animal.

Já em situações de maus-tratos, seja a animais de companhia ou pecuária, as denúncias são analisadas por uma equipa que faz a triagem e que tem em conta alguns requisitos como capacidade logística e de alojamento e a gravidade da situação.

“As denúncias que estiverem inseridas nas nossas áreas de intervenção, ou que reúnam os critérios, são encaminhadas para o departamento operacional onde os chefes de equipa de cada região reúnem os elementos e os meios necessários ao resgate. Deslocam aos locais e, se estiver configurado um potencial crime de maus-tratos a animais, acionam as autoridades competentes, se não estiverem reunidos os critérios, poderão encaminhar para as autoridades municipais, porque apesar de não ser um crime, poderá ser uma contraordenação”.

Desde junho de 2023 que o núcleo de intervenção e resgate animal colabora com a Proteção Civil, quer isto dizer que, em articulação com a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC), têm “legitimidade” para intervir nos teatros de operações.

Para o IRA, todos os resgates “são encarados como um desafio” em exigem preparação e conhecimento para avaliar se as situações constituem crime tendo em conta a legislação em vigor

“Mediante aquilo que a legislação em vigor determina para ser configurado um crime de maus-tratos, os membros do IRA acionam os meios necessários, aguardam pelas autoridades policiais ou municipais, e pela resposta, às vezes necessária, de um procurador para retirar os animais ou para emitir mandados para entrar nas habitações. Portanto, é um desafio, nenhum resgate é igual, nunca é só um animal que está ali maltratado e precisa de cuidados médico”.

“E nós, não ficamos simplesmente pela retirada, constituímos assistentes nos processos (…) e fazemos questão sempre de acompanhar todo o processo judicial. Somos inquiridos na qualidade de testemunhas, vamos prestar declarações em tribunal e aguardamos depois as respetivas condenações que, efetiva ou infelizmente, ficam sempre aquém daquilo que deveria ser o suposto num país evoluído como é o nosso”, acrescentou Tomás.

“Só querer adotar um animal é diferente de ter capacidade”

Quem quiser adotar um dos animais resgatados pelo IRA tem de mostrar mais do que “vontade”. É preciso comprovar que tem capacidade para suportar qualquer necessidade que o animal tenha. “As famílias quando adotam os animais têm que ter noção que os animais são saudáveis até ao dia em que precisam de ir a um médico veterinário e ir a um médico veterinário não é propriamente uma situação que seja barata, seja pouco dispendiosa”.

“O animal pode carecer de alimentação específica devido à sua condição clínica, à sua idade, ao seu tipo de raça. Portanto, a primeira avaliação que nós fazemos é a sua situação económica. Não exigimos que sejam milionários, evidentemente, mas que tenham uma flexibilidade, um conforto financeiro para se surgir alguma situação económica inesperada”.

Outro dos critérios a ponderar é a tipologia da habitação. “Muita gente poderá querer adotar um cavalo e dizer que tem um terreno, mas a lei prevê muito mais do que isso, prevê a implementação de estábulos, do terreno estar licenciado para a recolha e alojamento dessas espécies de animais”.

Por isso, “não basta querer ou ter o terreno, é preciso cumprir com a legislação em vigor. “Há pessoas que querem um cão de porte grande e a tipologia da habitação poderá não ser adequada”.

E, por fim, a rotina das pessoas. “Se for um animal que exige muito exercício físico, porque há raças que são mais enérgicas ou porque é um animal mais jovem (…) e a pessoa está 12 horas ou 18 horas fora de casa, se calhar não é o animal indicado.”

“Muitas vezes as pessoas acham que aquele animal que viram no nosso site, ou nas nossas redes sociais é o animal que querem adotar e nós acabamos por explicar que não é aquele, mas poderá ser outra alternativa de animal.”

Voluntários têm de passar por “recrutamento quase militar”

Mas para ser voluntário, o processo também é complexo e demorado. “Quase se assemelha a um recrutamento militar”, compara Tomás. O nosso voluntariado assemelha-se quase a um recrutamento militar. As pessoas gostam de apelidá-lo recrutamento militar ou policial porque as nossas provas físicas são exigentes. Ora, os cenários onde nós fazemos intervenções também são exigentes”.

O primeiro passo é responder ao recrutamento anual, a seguir realizam-se as provas de aptidão física para verificar se têm robustez física para ajudar da forma que a instituição ajuda. Passada esta fase, falta apenas “passar nas diversas formações que são ministradas a nível de equipas de primeira intervenção em incêndios, primeiros socorros, suporte básico de vida, incêndios florestais, regras de segurança, a legislação afeta ao bem-estar animal”.

Concluído o ano probatório, e se passarem com distinção, integram o estatuto de voluntário do IRA. Não basta querer, não basta gostar, é preciso mostrar efetivamente que tem capacidade para desempenhar funções de voluntariado na nossa instituição.

“Em média, temos cerca de 30 a 35 recrutas anuais para prestarem provas. Anualmente, ao final do recrutamento, concluímos com cerca de entre 5 a 10 recrutas. (…) Se nós poderíamos baixar os níveis de exigência para ter mais voluntários? Poderíamos, mas depois isso iria refletir-se no desempenho das nossas funções e nós primamos muito pela excelência do nosso trabalho.

IRA quer criar um partido político

Por sentirem que não há “uma representação forte ou visível a nível político que defenda os animais”, o IRA planeia avançar com a criação de um partido político. “Já existiu, ou pelo menos já acreditámos que tenha existido, atualmente não acreditamos que exista essa representação do bem-estar animal”.

“Não só o nosso partido tem obviamente essa ambição – de representar como representamos até hoje, durante estes nove anos, a defesa do bem-estar animal, – como também iremos representar a defesa das pessoas, porque já tivemos várias situações em que as pessoas vivem numa pobreza extrema, tiram da sua boca para alimentar os seus animais ou comprar medicação para os seus animais, e obviamente que isto está intrínseco. (…) Temos que obrigatoriamente ajudar as pessoas e vai ser, obviamente, a nossa primeira missão enquanto futuro partido político”.

O partido já tem nome, falta só reunir as assinaturas suficientes para ser avaliado pelo Tribunal Constitucional. “Chama-se Protege, que é aquilo que nós temos feito desde 2016, desde o dia 20 de setembro de 2016, que é proteger animais, pessoas e bens.”