Apresentação do livro “O PREC e o Relógio das Revoluções” de Aldo Casas e António Louçã. Edição da Parsifal, setembro de 2025.

Este é um livro militante.

Um livro que tem o mérito de convocar quatro grandes processos revolucionários que abalaram a Europa no espaço de um século: de 1871 com os 72 dias da Comuna de Paris, ao PREC em 1974-1975, passando pela Revolução Russa de 1917, a única triunfante em condições muito particulares, e a Revolução alemã de 1918-1921, perdida, ocultada, ostracizada.

Esta apresentação não pretende percorrer os trajetos destas quatro revoluções, sobejamente explicitadas no livro, mas antes sublinhar o seu rescaldo e a possibilidade de sobreposições, num contexto de acesa dualidade de poderes. Porque nestes quatro casos de estudo assinalam-se também “coincidências” que podem servir de ensinamento para evitar futuros equívocos e caso o futuro venha a apontar para uma perspetiva de alteração da ordem capitalista.

Em O PREC e o Relógio das Revoluções o passado é reavaliado através da “nossa Revolução dos Cravos”, ponto de partida e incentivo à exploração das três revoluções clássicas dos últimos 150 anos já apontadas.

Não é uma história do PREC, antes uma inventariação de diversas analogias que o coloquem na senda das revoluções modernas, e mesmo que diversas analogias possam induzir em erro.

Porque, como sublinham os autores, o processo português ilumina a partir de ângulos inesperados outras anteriores revoluções clássicas e “integra-se na experiência estratégica das classes subalternas”.

Um livro que convoca viagens, memórias que ainda preenchem o nosso imaginário e nos transportavam para as ações de rua, a militância quotidiana, que nos entusiasmavam e nos faziam acreditar, porque a rua era nossa. Mas que também remete para memórias dolorosas.

Duas das revoluções aqui reveladas foram afogadas em sangue. Outra mergulha numa brutal guerra civil, uma das causas do seu processo de degenerescência totalitária.

A nossa, de grande intensidade, parece ter-se esfumado de um dia para o outro, como um sonho breve. O nosso PREC, assim considerado como dos últimos processos revolucionários clássicos que antecedeu o pós-modernismo, o neoliberalismo, a era digital.

No “caso português”, muitos despertaram da adolescência e entraram na idade adulta com vivas à Revolução… Momentos raros. Conflituosos, contraditórios, mas inesquecíveis para quem os viveu e pelas marcas que deixaram.

Mas são as gerações que se empenharam e absorveram esses tempos – e se fragmentaram em grupos partidários de “extrema-esquerda” mais ou menos implantados nas “classes trabalhadoras”, são estas gerações que hoje encaram perplexas esta contrarrevolução que avança pelo mundo, de Washington a Bruxelas, de Moscovo a Buenos Aires, de Londres a Kiev ou Pequim. Ainda sem saber como lhe responder eficazmente.

A miríade de grupos situados no campo da designada extrema-esquerda permaneceu muito tempo irreconciliável. Uns evitavam falar de Kronstadt, sistemática insistência dos anarquistas, outros dos processos de Moscovo e da aniquilação da velha guarda bolchevique, ainda outros sobre o nefasto balanço da Revolução cultural de Mao ou o patético “Farol do Socialismo” albanês… alimentando equívocos e reforçando o sectarismo.

Um debate fracional, divisionista, tantas vezes separado da realidade, que também atingia as organizações que se reivindicavam do mesmo legado ideológico.

No livro Redenção (1990) o escritor, realizador e ativista Tariq Ali relata os desafios que se colocaram às esquerdas, neste caso ao movimento trotskista internacional, após a queda do Muro de Berlim e a divulgação da execução sumária de Nicolae Ceausescu e de sua mulher Elena no Natal de 1989. O líder convoca um congresso mundial para debater o fim do “comunismo” no leste europeu e como enfrentar esta convulsão. Participam as diferentes fações trotskistas e as subfações trotkistas e as sub-fações das subfações.

Num dos capítulos do livro, relata-se a estupefação de um dirigente que foi convocado a Londres para participar num Congresso de emergência. Desabafa: “Para um país cuja burguesia raramente se dividiu e cujo movimento dos trabalhadores permanece o mais unificado da Europa, o facciosismo e as divisões dentro do nosso movimento são de ficar perplexo…”.

O mesmo sucedeu com outras organizações. Assim, pode questionar-se se estará a “esquerda da esquerda”, fragilizada e ainda fragmentada, em condições de dar credibilidade aos seus apelos de que a Revolução ainda permanece na ordem do dia, para romper com o neoliberalismo (desregulação, privatizações, globalização do capital, concorrência, dívida, revalorização do mérito), e relançar a redistribuição, abordar de forma séria a urgência climática, restaurar os serviços públicos, democratizar a organização do trabalho, melhorar as condições de vida dos mais desfavorecidos, terminar com a violência policial e a repressão às liberdades individuais.

Uma outra causa da versatilidade do apoio às formações de esquerda também se deverá relacionar com o grau de democracia interna proporcionado por essas organizações.

E neste caso, é necessário fazer um balanço do desempenho das esquerdas radicais que emergiram nos inícios do século XXI com a designada “crise da dívida”, desde o Bloco de Esquerda ao Podemos espanhol, ao Syriza grego, ao Die Linke alemão, entre outros.

A esquerda era entendida como “movimentos que tentam mudar o mundo com o princípio da igualdade no centro do seu programa”. No entanto, o século em que vivemos nasceu como um tempo assinalado por um eclipse generalizado das utopias. A trajetória do comunismo soviético moldou a história do século XX, e o século XXI inicia-se com o derrube desta utopia.

Era a “resignação” ao capitalismo. As utopias do século passado desapareceram a deixaram um presente carregado de memória, mas incapaz de se projetar no futuro. Sem “horizonte de expetativa”.

Afinal, a “esquerda da esquerda” não conseguia nem destronar os velhos aparelhos da social-democracia ou as estagnadas burocracias, nem alargar o círculo dos seus aderentes e o número de eleitores. E quando o conseguiu, de forma efémera, falhou. São revezes que contribuíram para acentuar as divisões, que permanecem e continuam a enfraquecê-la.

Em 1967, em termos premonitórios, Guy Debord já desmontava a “sociedade do espetáculo” ao assinalar que “tudo o que era diretamente vivido se afastou numa representação”.

A deriva acentuou-se. A mutação do capitalismo triunfante da Guerra Fria para um capitalismo financeiro e digital global ameaça seriamente a ideia de emancipação, a capacidade de cada um pensar e decidir por si próprio. A passagem da democracia liberal ao autoritarismo pós-democrático, com uma “informação” manipulada e crescentemente controlada, impõe uma sociedade onde a desigualdade se acentua e os poderes políticos capitulam perante os poderes económicos.

Perante colossais desafios, será possível recuperar a linguagem do futuro?

A possibilidade de reinventar, em cooperação, uma esquerda de emancipação e um imaginário emancipador? Seria uma primeira resposta face aos atuais perigos de uma extrema ‘direitização’ dos espaços públicos. E uma forma de responder de forma determinada à aliança das direitas com as extremas-direitas.

Um processo que também implicará uma reflexão séria sobre a função e legitimidade da democracia parlamentar, do peso dos resultados eleitorais, de momento muito desfavorável, de reverter a pobreza de argumentos e sufocos internos, mas que também poderá significar uma longa travessia.

Talvez recorrer à velha fórmula da “análise concreta da situação concreta” ou como abordar, hoje, a questão da dualidade de poderes, da legitimidade dos parlamentos eleitos por sufrágio universal face à eventual emergência de novos sovietes, ou conselhos, ou comissões, adaptados aos desafios do século XXI.

Estes desafios, estes dilemas, também estão no cerna das reflexões de Aldo Casas e António Louçã quando abordam o “mecanismo” das revoluções através dos quatro “casos de estudo” selecionados. E aqui surgem novas interrogações.

Obedecem as revoluções, que revisitam as anteriores, a uma “lei própria”? Que balanços, que ensinamentos se podem recolher?

Ao contrário dos anteriores processos, focalizados em terminar com as raízes da guerra e da miséria, os autores consideram que “a próxima Revolução” terá de abordar as raízes da destruição ambiental, um desafio inédito.

Aí, o “proletariado” de hoje, noção sujeita a interpretações diversas, deverá ser mais uma classe “para as largas massas expropriadas, precarizadas e marginalizadas”, e quando o capitalismo “ameaça a sobrevivência da humanidade e do planeta”.

A velha sentença de Rosa Luxemburgo e de Trotsky, “socialismo ou barbárie”, permanece assim atual. Uma “Revolução futura” em alternativa à “barbárie” e centrada no combate definitivo à mercantilização total da Natureza, dos bens comuns, dos serviços públicos, que questione a lógica profunda da economia fóssil e extrativista.

E também um combate consistente ao que os autores designam de “produtivismo tecnológico”, através da defesa do clima, das florestas e oceanos, do ozono e glaciares, das populações humanas que estarão condenadas caso não surja “algum moderno sucedâneo dos sovietes”. E, acrescentaria, promover um mundo sem fronteiras onde se afirmará a revolução em curso em nome dos direitos das mulheres e contra o patriarcado opressor, sem esquecer que nesse percurso a luta é de classes, não de sexos.

No seu livro de referência Melancolia de Esquerda. Depois das Utopias (2016), Enzo Traverso assinala que o fim do comunismo associado ao bloco de leste rompeu a dialética entre passado e futuro, e que o eclipse das utopias, fomentado pelo nosso tempo do “presente”, provocou a quase extinção da memória marxista. E procura analisar esta mutação, pela transição da utopia à memória.

Traverso acentua a convicção de que um outro mundo é possível, mas sendo necessário reinventar as teorias e práticas num mundo com futuro comprometido. Rejeitar o sofrimento e a relembrança, procurar novas ideias e projetos que podem coexistir com as experiências do passado, e o seu enorme peso, é uma das suas perspetivas.

Impor uma esquerda com sentido autocrítico, que não se resigna à ordem mundial neoliberal mas que deve identificar-se e manter empatia com os vencidos da história, também para renovar o seu arsenal intelectual. A emergência de uma nova combatividade, que se irá unir a uma geração de esquerdistas derrotados.

Após a queda do Muro de Berlim, os rebeldes que restavam dos anos 60 e 70 – e quando o marxismo era então a expressão dominante da maioria dos movimentos revolucionários do século XX – depararam-se com uma visão da história gerada pelas derrotas dos anos 30 do século passado, um encontro que teve lugar sob o signo da melancolia política.

Ao contrário do humanitarismo hoje dominante, a melancolia de esquerda, que também se poderá confundir com nostalgia, sempre se concentrou nos vencidos. Percebe as tragédias e as batalhas do passado como um peso e uma dívida, que também são promessa de redenção.

Agora, trate-se de “Conquistar para a revolução as energias da embriaguez”, arrisca ainda Enzo Traverso.

Necessário o regresso a Marx, a Rosa Luxemburgo, a Gramsci, a Walter Benjamin, para voltar a encarar o futuro, evitando a repetição do sentido trágico da vida, reformulando a ideia de poder, porque a esquerda e o comunismo continuam a ser associados a uma radicalização das suas tendências autoritárias.

Questionar o poder, as relações entre pessoas, o indivíduo, os grupos de pessoas. Sair do atoleiro. Tentar ser feliz, abraçar e proteger a Mãe-Natureza, para que a esperança no êxito persista.

Exaltação, abandono, sobretudo confiança. Também o que se necessita para uma aproximação ao infinito. O livro que têm presente também aponta na direção do futuro.