Irene Solà (1990) já tinha impressionado com Eu Canto e a Montanha Dança, o seu segundo romance, e primeiro publicado em Portugal, com selo da Cavalo de Ferro. Agraciado com vários prémios – Cálamo Otra Mirada, Anagrama de Romance, de Narrativa Maria Àngels Anglada e da União Europeia para a Literatura –, o romance apresenta ao leitor uma estrutura atípica, que impressiona desde o início: original, desconcerta, obrigando quem lê a situar-se num jogo de regras novas. Afinal, o primeiro capítulo é logo narrador pelas nuvens que provocaram um raio – raio esse que fulminou um homem, lavrador e poeta oral. A narrativa é multifacetada, tal como as vozes que estão lá dentro, que tanto podem ser de fantasmas como de cogumelos ou montanhas ou humanos. Com isto no currículo, Dei-te Olhos e Viste as Trevas tinha de ser aguardado com expectativa.

Com igual exuberância, este novo romance debruça-se sobre a história de Bernadeta, tão velha que já ninguém sabe bem quantos anos tem, e que aguarda no leito a sua hora final. Ali, nas altas montanhas dos Pirenéus catalães, entre caçadores, bandidos, bruxas e demónios, um grupo de mulheres prepara a festa para a receber. Como se diz receber e não largar, intui-se que estas não são as mulheres vivas, mas as mortas: essas que pertencem à família de Bernadeta, gente condenada desde que uma ascendente traiu um pacto feito com o diabo. Só por este resumo, já dá para perceber que este Dei-te Olhos e Viste as Trevas segue alguns dos passos do livro anterior: na narrativa, cabem a vida e a própria ficção que pertence à vida, além da que pertence mesmo à ficção; os elementos que a prosa traz incluem elementos atípicos da literatura, além de vozes; e a própria linha cronológica é mais do que o discurso do dia-a-dia, pegando aqui na história, em séculos, em tradições, em medos colectivos.

O texto exuberante, com uma prosa voltada para o despertar dos sentidos. Repare-se nas primeiras frases:

A escuridão era roxa e movediça, opaca, cor de granada, umas vezes, e azul, vibrante, sarapintada, cega, espessa, funda e brilhante, outras. Estava infestada de vermes, de ramos, de tremores, de veios, de manchas. As nódoas, indiscerníveis, era as paredes barrigudas de um quarto, o texto, uma cama, uma mesa-de-cabeceira, uma cómoda, uma porta e uma janela. As trevas crepitavam. Agitavam-se, murmuravam. Ressonavam. O ronco era nasal, apagado e áspero. Rangia, engolia e arfava.” (p. 7)

Ao longo de toda a leitura, cada frase puxa o título, uma vez que o leitor acompanha várias gerações de mulheres amaldiçoadas, embrenhadas em negrume, cujas histórias parecem sufocantes até nos elementos circundantes. Com isto, a autora vai privilegiando os canais de tradição oral, mostrando, a partir de uma casa, de uma vida familiar, as heranças culturais da Catalunha.

Título: “Dei-te Olhos e Viste as Trevas”
Autora: Irene Solà
Tradução: Rita Custódio e Àlex Tarradellas
Editora: Cavalo de Ferro
Páginas: 160

Nisto, Solà não se coíbe de trazer a própria ficção para o campo da ficção, não deixando, por isso, a acção de ser verosímil: temos, logo no cerne, o já referido pacto com o diabo, e as consequências que se abatem sobre um grupo após uma traição. Isto vai contribuindo para que a autora consiga solidificar uma narrativa partindo até de um pensamento tacanho, estruturando a acção mais à volta disto do que das próprias personagens. Não que estas sejam largadas em incúria. Em vez disso, são sete gerações de mulheres em redor de crenças e demónios, numa construção que não deixa de lado o impacto da natureza e do ambiente sobre os estados de espírito de nenhuma delas, e isto ao longo de quatro séculos. Ao mesmo tempo, Solà vai introduzindo elementos de horror e de terror, através dos quais o medo se instala e se cria um ambiente a puxar para o fantasmagórico.

No meio de tudo, a própria morte não parece fim de nada, uma vez que as mulheres mortas da família continuam a dar os seus passos na cozinha, misturando-se com as vivas. O romance, assim, é mais sobre fantasmas do que sobre gente, não deixando por isso de ser sobre a humanidade, uma vez que pega não só nas expectativas frustradas tidas no pré-morte, mas também numa corda que une as familiares, apesar do fim da vida ou da passagem do tempo. Além disso, são fantasmas com corpo, capazes de agirem materialmente sobre a casa. Para o leitor, esta imagem de toque, sensorial, também vive na prosa, que traz corpo ao texto, e texturas e cheiros e diversidade material.

A forma como a autora ata todos os elementos é hábil e talentosa, conseguindo trabalhar em múltiplas frentes em simultâneo. Assim, a acção passa-se num único dia – mas a narrativa abarca séculos; a acção passa-se no mesmo espaço – mas a narrativa abarca muitos mais. Solà joga com o que está à vida e o que está oculto e não apenas descreve o que há, como traz todo o substrato, num texto bem cosido que flui em frente ao leitor sem que ele possa fazer nada senão seguir-lhe a corrente.

No meio disto, cada personagem traz as suas particularidades à narrativa, que impressiona por conter tanto em apenas 155 páginas. Em Dei-te Olhos e Viste as Trevas, tudo é exuberância e polifonia. Se para uma das mulheres, todas as outras são horrorosas, malditas e perversas, para outra tudo na vida é sexo, e para outra ainda tudo vive do quotidiano, e para mais uma ainda cada dia vive de beleza e de ternura. Parece que é a vida inteira, construída num caleidoscópico original, quase impossível, quase a roçar o anti-natura – e sempre desconcertante. Aliás, essa ideia de coisa anti-natura respira noutros âmbitos do livro, por exemplo na forma como a autora atira ao leitor tudo o que desperta os sentidos, não deixando isto, não raras vezes, de ser horripilante, asqueroso. Dá ideia de que os cheiros são sempre muito fortes, de que os animais são sempre agressivos, de que a cozinha tem sempre muito tempero e de que as árvores irrompem do chão como quem agride quem o calca.

Com tudo isto pesado, a leitura de Dei-te Olhos e Viste as Trevas não tem como ser banal. A tradução cuidada, com uma dupla de pares de mãos, de Rita Custódio e Àlex Tarradellas, mantém a elegância agressiva do original, veiculando uma história que sabe a puzzle de tanta coisa junta ao mesmo tempo. Do folclore ao horror, passando-se pela tradição e pela crença, Irene Solà lançou-se ao livro como quem quer açambarcar a vida – e ei-la açambarcada e condensada ao mesmo tempo.

A autora escreve segundo o antigo acordo ortográfico