O mais recente romance Ian McEwan tem andado pelas bocas do mundo como há algum tempo não acontecia a nenhum outro livro ‘sério’. A concorrência com o lixo literário ainda não toldou todos os críticos e raro tem sido o jornal, revista e plataforma que não tem dado destaque a O Que Podemos Saber. Ao folhear-se as páginas de cultura de várias publicações internacionais há um título que se destaca e que resume perfeitamente o livro, o da The New Yorker: “Ian McEwan retrata a Crise Climática como uma História de Adultério”. É o mais acertado resumo para as 446 páginas, que só se torna definitivamente compreensível lá para o fim, e que se diferencia de qualquer outro título de todas as outras publicações, as que fazem pensar ao leitor que Ian McEwan vai estar preocupado com o fim do mundo como o conhecemos devido às alterações climáticas, aos conflitos bélicos e outras situações como as que temos presenciado neste terceiro milénio.
Quase a meio do romance, McEwan introduz a realidade: a pandemia de covid-19, a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022 e a introdução dos drones numa guerra que deixa de ser tradicional. A par de uma visão do presente, McEwan introduz possíveis conflitos que não estarão assim tão distantes do que ainda poderá vir a ser uma realidade: uma guerra climática entre a Índia e o Paquistão, bem como a união de esforços entre a Arábia Saudita e Israel para invadir o Irão e impedir que este tenha as suas bombas atómicas, além do afundamento de um porta-aviões norte-americano no Estreito de Taiwan pela China… Não é necessário ser um visionário nem autor de ficção científica para antecipar certos cenários que, tendo muito a ver com o presente, se tornam mais entendíveis para os leitores atuais.
Antes de o leitor se aproximar do meio do livro, o cenário e o tempo cronológico é outro. Estamos em 2014, com a reconstrução de acontecimentos que andam um pouco para trás e para a frente, de forma que Ian McEwan comece a edificar a história que quer contar. Que se resume a dois palcos: um jantar memorável em casa do poeta Blundy para comemorar o aniversário da mulher, Vivien; a oferta de um poema especial que o poeta faz para a mulher e que fica, de forma mítica, como o expoente da sua capacidade literária.
A partir desse momento há uma perseguição literária que atravessa todo o romance: onde está o original do poema? Foi impresso num livro do poeta? Alguém é capaz de o refazer? Será algum dia lido pelos descendentes da humanidade daquele início do século XXI? O Que Podemos Saber é o relato de todos os esforços para descobrir a localização de uma obra inexcedível e que, num delírio muito bem imaginado, poderia até ser a explicação para as alterações climáticas que transformaram o planeta Terra na segunda época da ação: em 2119.
Não vale a pena sugerir que Ian McEwan faz questão de exibir neste romance toda a sua evolução, rigor e imaginação literária – é um empenho bem visível – na elaboração de uma narrativa que exige do leitor um esforço razoável para o acompanhar e, principalmente, entender as duas vozes principais. Capítulo após capítulo, McEwan vai cozendo uma teia de fios com vários personagens que acrescentam detalhes ao mistério do poema desaparecido, uns que dão esperança de que será encontrado e outros que demonstram que tal nunca acontecerá.
Se o espaço temporal em que é construída a narrativa é longo, há algo que faz lembrar um dos seus romances mais premiados, o Expiação, que há 24 anos se estendia por três gerações, também questionava a literatura e tentava solucionar um outro mistério. Ian McEwan reconhece essa semelhança com o anterior livro e já se referiu ao mais recente como resultado de “uma boa parte da minha ambição neste romance era colocar em diálogo o passado, o presente e o futuro.” Para realizar o seu desejo, McEwan partiu de um poema de John Fuller, Maarston Meadows: uma Coroa para Prue, que descobriu há alguns anos e que tem a particularidade de ser composto por quinze sonetos, sendo que o último verso de cada um é igual ao que começa o soneto seguinte.
Se se desejar tentar fazer um título a imitar o da The New Yorker, “Ian McEwan retrata a Crise Climática como uma História de Adultério” pode-se tentar, mesmo que seja impossível sem destruir todo o mistério – e um enorme marketing – deste novo romance. Até porque em nenhum momento o leitor espera que Ian McEwan ao fim de centenas de páginas desfaça o mistério apenas nas últimas cinco linhas de romance. Ou seja, com um posicionamento de extrema destreza literária, com recursos a uma linguagem que poucos hoje conseguem fazer ou manter, com um ziguezague intelectual imparável – muitas vezes até parece que deseja vencer a aposta de ser o maior escritor da sua geração, onde Martin Amis já não é um desafio, Julian Barnes já se ressente e Salman Rushdie rendeu-se perante a violência física que atrai – e está noutra categoria. Pela certa estará, afinal escrever um poderoso “policial filosófico” não é para todos. Até poderia ficar por aqui, fazer desta a sua última obra, se não tivesse outras ambições confessadas em O Que Podemos Saber.