A francesa Gisèle Pelicot, que, ao longo de quase uma década, foi drogada pelo marido e violada por este e por mais 50 homens enquanto estava inconsciente, vai voltar, nesta segunda-feira, a tribunal, depois de um dos homens condenados ter recorrido da sentença.
Durante o mediático julgamento, Husamettin Dogan, de 44 anos, garantiu, tal como outro dos arguidos, Jacques Cubeau, um ex-bombeiro de 73 anos, que sempre julgou tratar-se de um jogo entre o casal. Dogan, que trabalhava na construção civil e tinha o papel de cuidador de um filho deficiente, foi condenado a nove anos de prisão. “Não sou um violador, isso é demasiado pesado para mim”, disse numa das audiências.
O advogado de Gisèle Pelicot, Antoine Camus, referiu que a mulher preferia não ter de enfrentar um novo julgamento, mas que não se irá escusar a apresentar-se no Tribunal de Recurso de Nîmes, no Sul de França. “Ela estará lá para explicar que uma violação é uma violação, que não existe uma violação pequena”, disse Camus, citado pela agência noticiosa AFP. “Gisèle está pronta, está determinada”, declarou a outra advogada de Pelicot, Stéphane Babonneau, ao Le Figaro.
E é previsível que as audiências do recurso, agendadas para entre os dias 6 e 9, tenham um forte impacto mediático, com mais de 70 meios de comunicação social e empresas de produção a terem solicitado acreditação, adianta o jornal francês Libération, que acrescenta que estão previstas mobilizações feministas de apoio a Pelicot em todo o país.
O caso de Gisèle Pelicot ganhou relevância, durante o ano passado, por dois motivos: pelos contornos tenebrosos — um marido, supostamente pacato e que “toda a gente adorava”, drogava a mulher e propunha-a a vários homens, que a violaram, enquanto estava inconsciente, ao longo de quase uma década —, mas, sobretudo, pelo facto de a mulher ter recusado qualquer estatuto que lhe permitisse manter o anonimato, reclamando a vergonha não para si, mas para quem cometeu o que foram descritos como actos hediondos contra ela durante cerca de uma década. “Assim, quando outras mulheres acordarem sem memória, poderão recordar o [meu] testemunho”, disse. “Nenhuma mulher deve sofrer por ter sido drogada e sacrificada.”
Em Dezembro do ano passado, o tribunal condenou Dominique Pelicot, ex-marido de Giséle, à pena máxima de 20 anos, com o tribunal a considerar muitos dos arguidos culpados de violação agravada de Gisèle Pelicot. As excepções foram Saifeddine Ghabi, que era indiciado por tentativa de violação e foi considerado culpado de agressão sexual em grupo, já que o homem negou ter penetrado Gisèle (e não foram identificadas quaisquer imagens que o desmentissem), e Jean-Pierre Maréchal, condenado a 12 anos, mas pela violação da sua mulher, que drogou a conselho de Dominique Pelicot. As penas dos restantes foram desde os três anos de prisão, dois dos quais suspensos, até aos 20 anos de prisão de Pelicot.
Já depois do fim da audiência, Gisèle Pelicot garantiu que não se arrependeu de não ter optado pelo anonimato. “Nunca me arrependi dessa decisão”, disse, observando que tem “fé na nossa capacidade de construir colectivamente um futuro em que mulheres e homens possam viver em harmonia, com respeito e compreensão mútua”.