CRÓNICA | Este é um texto íntimo, delicado e serenamente emotivo, um texto que celebra a sorte mas que a teme também: porque Portugal tornou-se um país onde viver do lado certo de uma ponte pode ser a diferença entre perder um filho ou poder celebrar o nascimento dele. “Não consigo deixar de pensar nas mães que ficaram de colo vazio, não imagino sequer tamanho sofrimento, o sofrimento de perder um bebé às 31 semanas, às 40! De lidar com a amarga e eterna dúvida ‘se a urgência mais perto estivesse a funcionar, teria agora o meu filho nos braços?’.” Sara Pinto, a jornalista Sara Pinto, acabou de ter o terceiro filho, ela que levou “os nove meses desta terceira gravidez a noticiar diariamente o drama vivido pelas grávidas de norte a sul”. E é por isso que este relato é íntimo: íntimo para Sara Pinto, íntimo para todas as mães e para todos os pais, íntimo para um país que está a envelhecer e onde a vida de um bebé não devia depender de se ter sorte 13 vezes

Quantas vezes uma grávida precisa de sorte? O número está neste artigo

por Sara Pinto

 

Vivi três gravidezes nos últimos cinco anos. Todas foram acompanhadas no SNS, do qual sou defensora e no qual reconheço os melhores e mais competentes profissionais. 

Sorte a minha que a gravidez deste ano foi a primeira fora do contexto de pandemia. Em 2020 foi um sufoco até ao fim. A ecografia do primeiro trimestre foi a única em que o pai foi autorizado a estar presente. Ainda estávamos em fevereiro, foi uma sorte – podia não ter assistido a nenhuma. Logo a seguir, a partir de março, foi o fim do mundo de que nos lembramos. Todo o restante pré-natal foi sozinha: consultas, exames, outras ecografias. Uma ansiedade louca pelos relatos de grávidas que pariram igualmente sozinhas, de pais privados de presenciarem o primeiro instante dos filhos ou de cesarianas desnecessárias, numa correria aos privados só para garantir que pai e mãe estavam juntos no parto. 

O meu primeiro filho nasceu a 5 de agosto de 2020. Dois dias antes foi a primeira vez que não se registou qualquer morte no país por covid-19. Foi uma sorte ver de seguida as medidas aligeiradas, o que permitiu que o meu marido estivesse presente no momento do parto. Ainda assim, só podia permanecer no hospital comigo e com o bebé até duas horas após o nascimento. Por sorte não havia camas imediatamente disponíveis no internamento e ficámos a aguardar juntos no bloco de partos as oito horas seguintes. Mas os três dias que se seguiram até eu ter alta foram sozinha. Só eu e o bebé. Sem visitas de ninguém, nem sequer do pai, que não pôde dar colo ao filho nos primeiros dias de vida. Lembro-me de uma enfermeira me dizer que eu podia ir até ao fundo do corredor do internamento de obstetrícia, sair para a varanda uns minutos e espreitar para o parque de estacionamento, onde, com sorte, o marido conseguiria dizer-me um olá à distância. Foi também uma sorte ter acontecido no início de agosto. A partir de meio do mês, com os profissionais de saúde a serem finalmente autorizados a gozar folgas e férias depois do intenso momento pandémico, nem sempre estava garantida a presença de mais do que um anestesista no bloco de partos, o que poderia impedir algumas grávidas de recorrerem à analgesia epidural. Ufa, naquela madrugada estavam dois de serviço, tive a sorte de conseguir aliviar a dor. 

Em 2022 nasceu o meu segundo filho. Tive covid-19 durante essa gravidez. Uma sorte não ter tido praticamente sintomas, nem ter resultado em complicações para o bebé. O pai também testou positivo mas, por sorte, estávamos ainda longe do parto. No dia do nascimento já não foi necessário fazer testes, as grávidas já podiam ter acompanhante e também o internamento estava aberto a visitas. Que sorte! Não me livrei ainda assim de voltar a parir de máscara – e só quem conhece a dor de contrações entende a dificuldade de respirar com a boca e nariz tapados.

Chegados a 2025, da pandemia já não se fala mas… sorte precisa-se. Talvez mais do que nunca. 

Levei os nove meses desta terceira gravidez a noticiar diariamente o drama vivido pelas grávidas de norte a sul – mas sobretudo a sul – por causa das urgências obstétricas fechadas e a pensar como seria comigo. Será que teria uma urgência perto de mim aberta? Será que atenderiam a tempo a minha chamada para o SNS24? E se precisasse de uma ambulância, chegaria rapidamente?


Hope II, de Klimt: uma mulher grávida de olhos delicadamente fechados inclina solenemente a cabeça – como se estivesse a rezar pela segurança do seu filho. Uma oração de fé?, de medo?, de proteção?, disso tudo ou além disso? foto Getty

O meu terceiro filho nasceu a 4 de julho. Tive a sorte de entrar em trabalho de parto na manhã de um dia útil, porque ao fim de semana é quando fecham mais serviços. Por sorte, a minha chamada para o SNS foi atendida em poucos minutos. E, com toda a sorte, havia vaga no hospital para o qual desejava ser referenciada. Creio que tenho a sorte de morar na margem norte do Tejo, se morasse do outro lado da ponte talvez nem a sorte me valesse.

O único imprevisto foi o de ter permanecido mais 24 horas internada além do que era suposto – mesmo sem qualquer critério clínico que a isso obrigasse -, porque no dia da alta não havia pediatra de serviço no internamento de obstetrícia. Num departamento onde estavam dezenas de recém-nascidos não havia um único pediatra a trabalhar. Sem médico disponível, nenhum bebé ou mãe foram autorizados a deixar o hospital. Ficaram todas as camas ocupadas mais um dia – e, por causa disso, talvez outras grávidas não tenham tido a sorte de ter vaga ali.

13 pode ser número de azar, mas até agora conto neste meu relato 13 vezes em que a sorte me sorriu nos últimos cinco anos. Mas sabem qual é a sorte maior? É a de ter três filhos para abraçar.

Não consigo deixar de pensar nas mães que ficaram de colo vazio, não imagino sequer tamanho sofrimento, o sofrimento de perder um bebé às 31 semanas, às 40! De lidar com a amarga e eterna dúvida “se a urgência mais perto estivesse a funcionar, teria agora o meu filho nos braços?”. 

Esta pergunta devia acima de tudo pesar na cabeça de quem tem a responsabilidade de agir e mudar o que está mal. O SNS tem mesmo os melhores e mais competentes profissionais, mas precisam de ser valorizados e necessitam de outras condições de trabalho. Já não é suficiente o esforço hercúleo que fazem todos os dias. Isso já não basta para que o serviço, que devia garantir segurança e confiança, não deixe as grávidas entregues à sorte. Ou à falta dela.