
Madona com o Menino e Anjos, de Giovanni Battista Salvi da Sassoferrato (1609–1685)
Séculos de “narrativa teológica” transformaram uma mulher judia de carne e osso e de linhagem real num símbolo abstrato de pureza — apagando o seu papel central como verdadeira fundadora do Cristianismo, sustenta no seu novo livro um antigo professor de Judaísmo Antigo e Cristianismo Primitivo.
Um novo e controverso livro de James Tabor desafia dois milénios de tradição cristã, argumentando que Maria, a mãe de Jesus, não foi meramente uma figura passiva na história das origens do Cristianismo, mas a verdadeira fundadora desta religião.
Em The Lost Mary, Tabor apresenta uma visão diferente de Maria, uma mulher de ascendência duplamente real cujo papel central no advento do movimento cristão foi sistematicamente apagado, de forma estratégica, da História.
O estudioso da Bíblia e antigo professor de Judaísmo Antigo e Cristianismo Primitivo na Universidade da Carolina do Norte apresenta várias afirmações radicais que acredita poderem “reescrever as próprias origens do cristianismo”.
A sua tese centra-se na recuperação da Maria histórica, afastando-se do que designa como séculos de “narrativa teológica” que transformaram uma mulher judia de carne e osso num símbolo abstrato de pureza.
Ao contrário das narrativas tradicionais que situam a fundação do cristianismo com Jesus e a sua expansão através de Pedro e Paulo, Tabor defende que Maria foi a verdadeira arquiteta do movimento cristão.
O antigo professor sustenta que Maria foi a matriarca de uma dinastia religiosa, ligando as três figuras mais influentes do cristianismo primitivo: João Baptista, Jesus e Tiago, que sucedeu a Jesus como líder do movimento em Jerusalém.
“Foi um assunto de família”, escreve Tabor, sugerindo que Maria proporcionou a estabilidade, a continuidade e a inspiração que permitiram ao movimento de Jesus sobreviver após a crucificação.
Tabor interpreta a narrativa do Evangelho de João, em que Jesus confia a sua mãe “ao discípulo a quem Jesus amava”, como evidência de que este discípulo amado era, na verdade, Tiago, irmão de Jesus, demonstrando o papel central de liderança de Maria desde o início.
Tabor atribui a falha dos historiadores em reconhecer a importância de Maria ao preconceito académico do século XIX.
“As mulheres foram largamente marginalizadas na academia, na igreja e na sociedade em geral, levando os estudiosos a projetarem estruturas sociais contemporâneas na Galileia do século I e a negligenciarem a influência de Maria”, explica.
Talvez o argumento mais controverso de Tabor diga respeito à genealogia de Maria. O autor propõe que a ascendência de Lucas, tradicionalmente considerada como a linhagem de José, documenta na verdade a linhagem de Maria.
A mãe de Jesus teria assim “linhagem duplamente real” por descendência tanto do rei David como de Aarão, o primeiro sumo sacerdote.
Ao contrário da genealogia de Mateus, que segue a linha real de Salomão, a genealogia de Lucas inclui nomes associados à classe sacerdotal de Israel: Levi, Eliezer e Jannai. Esta herança, argumenta Tabor, teria conferido aos filhos de Maria direitos legítimos tanto ao trono como à liderança do templo.
Este argumento enfrenta ceticismo nos meios académicos, já que a genealogia de Lucas nunca menciona explicitamente Maria e traça a linhagem através de José, nota a National Geographic.
No entanto, Tabor aponta para evidências de apoio em escritos cristãos primitivos. Escritores do século II e III, como Hipólito de Roma e Orígenes, descrevem Jesus como “tribalmente misto”, combinando linhagens reais e sacerdotais.
Além disso, Tiago era descrito a usar vestes sacerdotais, o que sugere o reconhecimento do seu estatuto sacerdotal — uma linhagem que “deveria vir de Maria, uma vez que José não tinha qualquer reivindicação de estatuto sacerdotal”, argumenta Tabor.
Se o papel de Maria era tão central, porque é que o Novo Testamento a relega tantas vezes para segundo plano? Tabor aponta para o que caracteriza como um apagamento deliberado por líderes cristãos primitivos, que procuravam reformular a mensagem da fé.
No Evangelho de Marcos, o mais antigo, Jesus é identificado como “filho de Maria”, estando José completamente ausente — o que deixa Maria como figura central da família.
No entanto, nas epístolas de Paulo, Maria praticamente desaparece. Paulo nunca a nomeia, referindo-se apenas a Jesus como “nascido de mulher”. Posteriormente, outros evangélicos reintroduzem formalmente José como pai de Jesus, diminuindo ainda mais o destaque de Maria.
Este apagamento, sustenta Tabor, foi estratégico.
Ao marginalizar Maria, Paulo e líderes posteriores redirecionaram a atenção da família judaica de Jesus para a sua identidade cósmica como Cristo — mudando o foco de uma dinastia de carne e osso enraizada na política judaica para uma mensagem de salvação universal, conclui Tabor.