Mesas de campismo montadas, comida a ser trazida de improviso, uma sede eleitoral virada do avesso. Estávamos no fim de agosto e a candidatura de Filipe Araújo, atual vice de Rui Moreira, tinha recebido uma má notícia: candidatos às freguesias portuenses das listas de Pedro Duarte tinham apresentado um pedido de impugnação das listas do movimento independente, argumentando que este deveria apresentar mais assinaturas. “Foi um trabalho absolutamente titânico para responder a energúmenos, uma semana louca”, descreve agora Araújo sobre o trabalho de verificação das assinaturas. A candidatura seria autorizada a seguir caminho, mas a acrimónia entre os dois adversários adensava-se sem remédio.
O episódio ilustra, na verdade, um padrão de relacionamento cada vez mais deteriorado entre as duas candidaturas. Araújo classificou o pedido dos sociais democratas como um ato de “bullying” que faria Sá Carneiro “corar de vergonha”, já apontou “falhas de caráter” a Pedro Duarte e este fim de semana aconselhava o PSD a “fazer terapia” para ultrapassar uma nega sua. O PSD responde classificando-o como um candidato “pretensamente independente”, que não passa de uma “bengala do PS” e que espalha “fake news”. O tom sobe, o azedume é evidente e a tensão já chegou ao ponto de haver uma queixa na polícia por um alegado episódio de violência.
Por trás da tensão entre as duas candidaturas há, é claro, razões políticas: a potencial divisão da direita e as tentativas de Pedro Duarte (e Luís Montenegro) de convencer Araújo a não avançar foram o rastilho para o clima que se vive agora; pelo meio, ambos lutam pelo legado de Rui Moreira — e Duarte puxa também pelo de Rui Rio; antes disso, os dois já se conheciam dos tempos da JSD e do PSD. Com o clima a aquecer, Manuel Pizarro já aproveitava este fim de semana para ironizar: “É caso para dizer, na relação entre o PSD e Filipe Araújo, o ditado popular: zangam-se as comadres, sabem-se as verdades”. É que, se os dois não são, segundo as sondagens, os adversários mais diretos, por vezes parecem.
As trocas de acusações não ficam pelo episódio da tentativa de impugnação e existem de parte a parte, mas para perceber o clima tenso entre as duas candidaturas é preciso recuar uns meses. Na verdade, uns anos, se se saltar para a época em que a JSD juntava boa parte das candidaturas atuais: nos idos de 2006, Miguel Corte-Real (ex-líder da bancada municipal do PSD e agora candidato pelo Chega) presidia à JSD do Porto, Pedro Duarte à concelhia do PSD e Filipe Araújo era presidente da mesa da JSD Porto. Os confrontos internos que se sucederam na SOP — secção ocidental do Porto — do PSD, de onde vinham Duarte e Araújo, viriam criar a semente da dinâmica para o que agora fonte próxima do social democrata descreve como uma “guerra de irmãos”.
O tempo trouxe uma bifurcação nos caminhos dos dois: em 2013 Filipe Araújo saía do partido, argumentando que a social-democracia com que se identificava já não se encontrava ali, e passava a fazer parte das listas de Rui Moreira; seria eleito vereador, ficando com o Pelouro da Inovação e Ambiente, e em 2017 seria candidato como número dois de Moreira, tendo sido seu vice nos últimos oito anos. Nos últimos tempos da governação de Moreira, a intenção de Araújo de assumir uma candidatura própria, em nome do movimento cívico que integrava, não era segredo. E foi então que começaram a circular os rumores sobre uma candidatura do “irmão” de outros tempos, Pedro Duarte, pelo PSD (com apoio de CDS e IL).
O primeiro motivo de tensão foi evidente: o PSD calcula que Filipe Araújo possa ‘roubar’ votos à direita e assim dividi-la, numa altura em que as sondagens o colocam em empate técnico, perdendo ou ganhando por muito pouco, com Manuel Pizarro. Para os sociais democratas, era essencial convencer Araújo a integrar as suas listas. “Ele tem uma ambição desmedida“, acusa fonte próxima de Pedro Duarte, lembrando que até certa altura Rui Moreira estava a fazer a ponte neste processo e na tentativa de encontrar soluções que agradassem às duas partes, até ao encontro, noticiado pelo Observador, que incluiu mesmo a presença de Luís Montenegro.
Os dois contam versões diferentes sobre o que aconteceu nesse dia: num dos debates que os opuseram, Araújo garantiu que foi convidado para ser número dois da candidatura de Duarte e que essa é a “pura verdade”, uma informação que o próprio desmentiu; Araújo insinuaria fortemente que o convite foi feito pela boca de Montenegro, mas com Pedro Duarte presente, naquele encontro “a 30 de dezembro, se não me engano, às 11h30, num hotel conhecido em Espinho”, como descreveu em entrevista ao Observador.
As duas partes juram que chegaram ao hotel de boa fé e com vontade de chegar a um acordo: o PSD e o CDS queriam que Araújo (assim como outras figuras cimeiras da sua candidatura) fosse integrado nas listas, tentando evitar o perigo de divisão à direita numa oportunidade crucial para reconquistar a autarquia; do lado de Araújo o Observador ouviu também a descrição das tentativas de chegar a acordo — Araújo queria continuar com a lógica do movimento independente e aceitaria o apoio dos partidos, a sua presença “com bandeiras” nas ações de campanha e a presença permanente de um “representante”, como Pedro Duarte, assim como a presença de Montenegro na noite eleitoral, para que o PSD pudesse reclamar vitória para si nessa noite. O ideal, acreditava-se, até seria que Rui Moreira abandonasse a autarquia uns meses antes e que Araújo pudesse entretanto assumir a presidência e ir ganhando tração e notoriedade como presidente.
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Nada feito. Araújo não aceitou os convites do PSD — acreditava que a candidatura de um independente se diluiria numa candidatura partidária e que nada viria acrescentar à lógica da campanha de PSD e CDS (a que IL se juntaria depois). Até colocaria a hipótese de não encabeçar a candidatura, mas só se o candidato fosse, como chegou a especular-se, um “senador” como José Pedro Aguiar-Branco, com um “estatuto” que o levaria a recuar.
Duarte diria depois, em entrevista ao Observador, que tinha feito “tudo o que seria razoável” para contar com o independente. Na sua equipa admite-se que à partida Araújo “rouba votos que estariam muito ligados ao PSD”, além de contar na sua equipa com dirigentes ou antigos dirigentes do CDS, “que sempre votaram Rui Moreira”. Por isso, para uns, seria importante somar as partes todas e apresentar uma candidatura de direita menos dispersa; para outros, isso seria matar o movimento cívico que nos últimos doze anos governou o Porto. Sem acordo, a guerra de bastidores (e não só) começava.
Este sábado, Montenegro referia-se, aliás, a candidatura de Araújo com um ataque direto, garantindo que Pedro Duarte tem junto de si os “verdadeiros independentes”: “Os verdadeiros independentes são estes que se juntam a estes três partidos, não são aqueles que saem dos partidos para simular que são independentes. Não somos independentes quando estamos à espera que os partidos nos dêem alguma coisa e, quando não dão, então rumamos para outras paragens.”