O almirante da reserva da Marinha de Portugal Henrique Gouveia e Melo, de 64 anos, é o preferido dos portugueses, segundo as pesquisas, para as eleições presidenciais de janeiro. É a primeira vez que ele se candidata a cargo político e está na disputa como um independente, sem filiação partidária. Seu nome ganhou projeção na pandemia, quando coordenou uma força-tarefa para vacinação.

Gouveia e Melo se coloca como uma opção de centro em um país onde a ultradireita ganhou musculatura, mas onde os sociais-democratas têm, ao menos ainda, a maior bancada no Parlamento. Ele esteve no Rio e em São Paulo entre sábado e ontem. Teve encontros com políticos de diferentes correntes para “criar uma conexão mais alargada” com a política brasileira. Ele não quis revelar com quem se reuniu. Outro objetivo foram conversas com empresários portugueses no Brasil.

Gouveia e Melo compara o modelo presidencial de Portugal com o de gestão de uma empresa. O CEO é o primeiro-ministro. O presidente é o chairman, alguém que indica os grandes caminhos a seguir, enquanto o primeiro-ministro é quem executa, quem toca o governo. A seguir alguns dos trechos da entrevista ao Valor, ontem, em São Paulo:

Valor: A que o senhor atribui sua liderança nas pesquisas?

Henrique Gouveia e Melo: Em muitos países, não só em Portugal, há um cansaço com o poder político, com a política em geral. Esse cansaço tende a penalizar a política tradicional e têm aparecido novos políticos ou novas formas de fazer política. Muitas dessas formas são formas que trazem com elas também o extremismo político. Muitas vezes de direita, mas também muitas vezes de esquerda. E eu achei que devia contribuir para atrair as pessoas outra vez para a política, mas ao centro. Porque acho que é ao centro que estão as decisões equilibradas e ponderadas. O bom senso nunca está nos extremos. O bom senso está ao centro. Às vezes, o modelo à esquerda é o utópico, são sociedades utópicas. E à direita são sociedades de colmeia, em que o Estado passa a dominar a sociedade e limita as liberdades. À esquerda isso também acontece. Eu acho que a população humana tem, em termos gerais, 65% a 70% eleitores do centro. E depois há uma faixa que se divide à esquerda e à direita e que são os outros 35%. Às vezes está a direita mais forte. Direita extremista… Está a direita mais forte. E esvazia a esquerda e enche a direita, outras vezes é ao contrário. Está a esquerda mais forte e esvazia a direita. Mas há sempre um voto de protesto. Eu, de alguma forma, como venho fora da política, vou carrear um bocado esse voto de protesto, mas posso ser, porque sou uma pessoa moderada, acho que tenho bom senso e, como tal, me situo no centro político.

Valor: Como candidato de centro, como o senhor vê a atual legislação que cria novas restrições à entrada de imigrantes em Portugal? Prejudica ou ajuda a economia portuguesa neste momento?

Gouveia e Melo: Este é um problema verdadeiramente complexo e multifatorial. O extremismo político simplifica esse problema. Como simplifica? “Eles e nós. Estamos sendo invadidos, estão tirando os empregos, estão tirando as casas.” É a emoção e não a razão. Na realidade, está provado que se Portugal quiser crescer, para estar no pelotão da frente dos países europeus em termos de desenvolvimento e de progresso econômico, tem que crescer, no mínimo a 3%, durante 10 anos. Nós temos tido crescimentos na ordem de 1,5% ou abaixo de 1,5%. Não há forma nenhuma, e isso está provado em diversos estudos econômicos, de Portugal crescer 3% sem a contribuição dos imigrantes. Portanto, nós precisamos de mão de obra, precisamos, nesta fase, de mão de obra a todos os níveis, a mais qualificada e a menos qualificada, para podermos crescer. Se não tivéssemos essa mão de obra, não só a economia iria se ressentir muito, mas também, em termos de uma pirâmide etária invertida, até a sustentação da seguridade social podia ficar em xeque. A contribuição para a seguridade social, a presença de pessoas que contribuem para pessoas que não trabalham, desceria. Neste momento são cerca de seis para cada uma pessoa que não trabalha. Há seis pessoas que ainda estão trabalhando que contribuem. Sem imigração [essa relação] desceria para algo como um para quatro. Isso afetaria a sustentabilidade da seguridade social. Os imigrantes mais jovens, de alguma forma, preenchem essa lacuna da nossa pirâmide etária invertida.

Identifico-me com FHC ou com Temer, indivíduos mais ao centro e mais equilibrados”

— Gouveia e Melo

Valor: Por outro lado, o número de imigrantes em Portugal passou a ser visto por muitos no país como fonte de problemas.

Gouveia e Melo: Não podemos permitir, e, de alguma forma, a direita tem alguma razão. Não no aspecto emotivo do “nós contra eles”, mas nós não podemos permitir dois ou três fenômenos que também acontecem. Muita gente migra para Portugal para encontrar um visto de autorização para depois poder sair de Portugal e ir para outros países da Europa. Portanto, nós somos um local de transação documental. E isso não acrescenta nada à economia. Isso, para nós, não é bom. Esse é um dos fatores. Não podemos andar a vender a nossa nacionalidade, não podemos facilitar, através da nossa nacionalidade, a imigração para o resto da Europa. Isso não faz sentido. Mas nós queremos que a nossa economia se desenvolva. Não é só aumentar em volume, tem que aumentar em qualidade. E para isso precisa ser uma economia de maior valor agregado. Como é que uma economia se transforma de uma economia de baixo valor agregado numa economia de maior valor agregado? Introduzindo duas coisas, tecnologia e conhecimento. Portanto, é natural, e agora a lei que saiu reflete um bocado isso. É natural que a Portugal deseje trabalhadores mais qualificados para poder melhorar a sua economia, tornando uma economia mais especializada, de maior valor agregado. Só que isso não vai acontecer de um dia para o outro. Não é por decreto que essas coisas acontecem. Porque leva tempo fazer essa transformação. Nesta fase, nós precisamos de trabalhadores menos qualificados e desejamos trabalhadores mais qualificados para fazer essa transição. E a transição não vai ser feita de um dia para o outro. Há uma grande preocupação no Brasil de que agora só há [portas abertas para] trabalhadores qualificados em Portugal. Esqueçam isso. A economia ainda precisa de trabalhadores não qualificados. E enquanto está fazendo a transição, vai precisar deles. E esses trabalhadores podem até ter a chance de se qualificar em Portugal e fazerem parte dessa nova economia.

Valor: Se o senhor for eleito presidente de Portugal, tem planos de alterar algo nas regras relacionadas à entrada de imigrantes?

Gouveia e Melo: Um presidente não tem o poder legislativo. Pode influenciar através do seu exercício, da magistratura de influência, vetando aqui ou ali, ou negociando com a governança e com o poder legislativo. O que eu vou tentar fazer é criar bom senso. E o bom senso é que nós não podemos, de um momento para o outro, dizer: “Agora não queremos ninguém não qualificado”. Porque isso faz colapsar a nossa própria economia. O que nós não podemos permitir, e já agora. E deixe-me só acrescentar que há um sociólogo inglês, Karl Popper, que escreveu que o limite da tolerância da democracia é importar intolerância. O que nós não podemos é importar intolerância de outras regiões do mundo que têm culturas intolerantes e depois migram para dentro da nossa sociedade e querem replicar essa cultura intolerante dentro de uma sociedade tolerante. Claro que não são os brasileiros, não são os angolanos. Nós, nos países na comunidade de países de língua portuguesa, não temos isso. Os muçulmanos que vivem em Moçambique ou que vêm de Guiné-Bissau são muito tolerantes, têm uma cultura de tolerância. Agora, há outras regiões do mundo em que as pessoas fogem por motivos econômicos, mas fogem trazendo a cultura de intolerância. E não podem criar guetos dentro da nossa sociedade com culturas intolerantes.

Valor: Sobre uma pauta cara aos governos liberais: corte de impostos, redução de gastos, contas públicas ajustadas. Essa também é uma pauta da sua candidatura?

Gouveia e Melo: Se considerar que há um centro político, nesse aspecto [da agenda gestão da economia] eu estou mais à direita. Estou mais à direita porque Portugal sofreu uma política má de contas públicas e tivemos um resgate financeiro com consequências terríveis para a sociedade portuguesa. Isso nos últimos 10 anos. O que nós temos que fazer é, com bom senso, perceber que a economia, para funcionar, tem que ter liberdade de ação. Quando o Estado é um travão à economia, a economia não se desenvolve no seu potencial máximo. E não se desenvolvendo no seu potencial máximo, prejudica o próprio país. O outro lado é que os impostos que nós retiramos desta economia podem asfixiar a economia. Por quê? Porque numa economia globalizada, o país torna-se menos competitivo, não há investimento e, portanto, nós não desenvolvemos a economia. Temos que fazer uma transição, que não pode ser brusca, mas uma transição lenta, para um modelo em que o Estado liberta a economia e retira menos dividendos dessa economia e, gastando melhor esses dividendos. Isto é o que eu considero mais à direita. No entanto, os gastos do Estado e a eficiência do Estado têm de ser elevadas para conseguir criar os elevadores sociais.

Valor: Políticas voltadas à população mais pobre?

Gouveia e Melo: São políticas de esquerda. São políticas sociais que, em vez de alimentar a pobreza, subsidiando a pobreza, o que nós vemos é alimentar a transformação social. Devemos criar elevadores sociais. E quais são os elevadores sociais? A cultura, a educação, a habitação. São aquelas coisas que são básicas, mas que transformam a vida das sociedades. Eu sou católico, mas eu não gosto, muitas vezes, daquela piedadezinha católica, que a gente vê um pobre, dá-lhe uma esmola e fica com a consciência limpa. Não, nós não podemos é ter pobres. Nós temos que, em termos da nossa coesão social, ter uma sociedade numericamente colocada na classe média ou classe média alta e não uma grande porcentagem de pobreza. Em Portugal, 20% da população portuguesa vive num limiar da pobreza. Isso é uma porcentagem gigantesca para qualquer país. Deveriam ser 2%, 3%. E essas pessoas que vivem num limiar da pobreza acabam também não contribuindo para a economia. São um peso para a economia. Portanto, o Estado, de forma inteligente, tem que diminuir o atrito para que a economia puxe por essas pessoas criando elevadores sociais para os qualificar também para que eles possam participar numa nova economia. E fazendo isso, reduzimos a pobreza e trazemos as pessoas para a classe média. E ao trazermos as pessoas para a classe média, fazemos uma coisa muito importante, que é sustentar verdadeiramente a democracia. Porque o indivíduo que tem casa, tem família e tem uma vida estável, é moderado por natureza, gosta da liberdade e não gosta de radicalismos políticos.

Valor: Com quem o senhor mais se identifica na política brasileira? Com o presidente Lula ou com o ex-presidente Bolsonaro?

Gouveia e Melo: Olha, Fernando Henrique, ou com Temer, indivíduos mais ao centro e mais equilibrados. Eu considero que a política é um espectro. Vai de um extremo ao outro. O pêndulo da política às vezes vai para a esquerda e para o extremo. E depois, porque tem muito balanço, vai para a direita e para o extremo. O que é que acontece? Cada vez que vem alguém ao poder, a primeira preocupação é destruir o governo federal. Resultado, o país não avança. Se o pêndulo oscilar menos, e isto à volta do centro político, há muito mais consenso sobre as políticas que fazem avançar o país.

Valor: O pêndulo em Portugal está em que ponto hoje?

Gouveia e Melo: O pêndulo está a ganhar balanço para a direita. Pode ser perigoso. Depois, a seguir, quando isso falhar, vai ganhar balanço para a esquerda. E depois, falhando, vamos entrar numa zona demasiado extremada ou polarizada da sociedade. Assim como outros países europeus, Portugal projeta ampliar seus gastos militares, conforme proposto no projeto orçamentário de 2026.

Valor: Como outros europeus, Portugal projeta ampliar os gastos militares em 2026. O senhor partilha da defesa desses aumentos?

Gouveia e Melo: Sim, eu partilho porque nós devemos dar um sinal à Federação Russa. A preocupação que temos é com a Federação Russa e com os problemas na Europa. A Federação Russa tem uma economia que é um décimo da europeia e se ela não parar com essa agressão nós vamos aportar o dinheiro suficiente para superarmos a capacidade russa em muito.

Valor: Qual o impacto das tarifas dos EUA para Portugal?

Gouveia e Melo: Qualquer tarifa prejudica a economia. Há uma ideia econômica que acabou há mais de um século e, pelo visto, há pessoas menos cultas que querem reeditar algo que já falhou há um século. É o mercantilismo, que olhava para a balança de transações. A ideia era: eu tenho que vender muito mais para fora do que tenho que importar. Isso acaba por matar os mercados exteriores. E nós não progredimos matando o mercado, nós progredimos aumentando sucessivamente o mercado interno e o mercado exterior.