O que será? A segurança que o controlo transmite?
Sim, uma noção de poder meio irreversível, justamente. Fico pensando qual é o lugar da ficção e da literatura nisso, daí a minha urgência nesse livro. Outro dia, eu estava lendo uma filósofa… esqueci o nome dela. Me mandaram, porque sabem que isso me interessa: uma filósofa eslovena que fez um post. Ela é do grupo do Zizek, sabe? É ligada à psicanálise, é lacaniana [Alenka Zupančič]. Ela dizia que a inteligência artificial não vai ter nunca “o outro”, o real. Logo, ela não pode ter a contradição, não pode ter o desconhecido, o mistério. Então, como resistência, só nos resta “o outro”, o verdadeiro outro, o real, a morte, o desconhecido, porque isso a inteligência artificial não tem.

A computação quântica vai introduzir o aleatório, a contradição. Falava-se numa previsão de 20 anos para a sua total funcionalidade, antecipou-se há pouco tempo para cinco.
Por enquanto, espero ainda poder usar isso [“o outro”] como algum tipo de resistência. A literatura está nesse lugar, ou deveria estar, enquanto a computação quântica não chega. Se há alguma possibilidade de resistência política, existencial, é no sentido da ficção — como confronto com o mistério, com o que não tem solução, com o que você desconhece. O que me parece é que há uma espécie de rendição voluntária da literatura, sobretudo por questões talvez oportunistas de mercado em nome de “um outro” que, na verdade, é puro reconhecimento [de si próprio], que é mais uma impostura. É nesse sentido que eu digo que a ficção tem a ver com a verdade, porque é uma forma de você manter esse desconhecimento, esse mistério do mundo. Nós, como somos finitos, temos uma certa urgência que a máquina não tem.

A máquina não morre.
A história da ficção científica no livro é a da máquina, que vem e se apodera. O que cria uma urgência, uma revolução. É curiosa a duplicidade da ideia de memória, aqui: a de alguém que não tem memória, não tem afetações, que consegue matar os outros que vêm fazer mal; e a dos que reconhecem os familiares [e não conseguem resistir-lhes]. A revolução partiu da única pessoa que não se lembrava de nada. Ela é, na verdade, a anti-máquina, porque ela não tem memória. Mas o ser humano não existe sem memória. Isso é um silogismo: a memória estar ligada ao controle e a não-memória estar ligada à salvação. É óbvio que isso é uma inversão também, porque eu acho que a memória salva. Mas acho interessante no livro a anti-máquina ser a salvação da mesma forma que o amor existe na violência, no caso, o amor paternal. Foi um amor absolutamente verdadeiro que salvou o menino [da história de ficção científica], não deixando que a memória fosse inoculada nele. Foi o verdadeiro pai, a verdadeira mãe, não se sabe, quem conferiu nele a possibilidade de revolução, de escapar à regra à qual todos estão sujeitos. Algo que a máquina nunca faria.

Esperança. É essa a função narrativa de ter acrescentado esta história de ficção científica à história do livro?
É estranho… Falando, parece que eu pensei tudo e que o livro é todo organizado, é uma mera ilustração de uma tese que eu tenho a priori. E não é. Acontece sempre assim: eu tenho algumas vontades, muitas delas são inconscientes, e o próprio texto vai me guiando, vai me dizendo coisas. Acho que, muitas vezes, há frases que eu não entendo porque elas estão ali, e essas frases são as mais importantes do romance.

É do tipo de escritores que, quando começa a escrever, não sabe como o livro vai acabar?
Às vezes, até sei como gostaria de acabar, onde eu mais ou menos quero chegar. Mas não sei, de verdade. Ttenho até uma deficiência mental de compreensão das coisas. Por vezes, a escrita é como se fosse um fluxo inercial, em que o texto me leva para lugares sobre os quais eu, ou por preguiça, ou por cansaço, ou por limite, não tenho domínio absoluto. Ele vai se compondo, depois eu vou entendendo. Às vezes, surgem frases que me fazem reescrever o texto inteiro.

Relê o que escreve?
Enquanto estou a escrever, sim, releio. Mas, quando acabo, não, não releio mais.

Senão nunca consegue acabar, vai sempre querer mudar alguma coisa?
Ou posso ter uma ideia de mim que não quero contradizer e que, se ler os livros, vou ver que não sou o que achava que era.

Mas isso é bom. Ou não?
É bom, é bom, e também faz você passar para uma outra etapa, seguir em frente, fazer outras coisas. Você acha que são outras coisas, mas, no final, é sempre o mesmo. Há coisas que se repetem, que eu não sei de onde vêm. Por exemplo, a estrutura do livro. Em quase todos os meus livros, acontece uma coisa e, de repente, há um salto, uma viagem — o epílogo decorre em outro lugar. E isso sempre acontece, outro tempo, outro lugar, em que as coisas não se resolvem mas se ressignificam. O Nove Noites também tem uma história e, de repente, há um salto para um outro lugar. De repente, o narrador vai a Nova Iorque. Neste, ele vai a Berlim. Isso se repete constantemente, é automático. Essa ideia de sair fora, de deslocamento, de você não pertencer ao lugar, é importantíssimo para mim. Mesmo no meu lugar. Sou só brasileiro, não sou outra coisa, não venho de nenhum outro lugar, sou absolutamente brasileiro. Mas, ao mesmo tempo, é importante para mim eu me sentir mal, me sentir não totalmente pertencente a esse lugar, entendeu?