Na primeira faixa de “A procura da batida perfeita” (2003), de Marcelo D2, o título avisa: “Pra posteridade”. Em cinco segundos, a voz do que parece ser um locutor de rádio precede a de Elis Regina (1945-1982), em áudio retirado dos bastidores da gravação da clássica “Águas de março”, de Tom Jobim (1927-1994): “Então vamos prestar atenção nessa bosta aqui”.
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— Era (para ser) o Tom e a Elis abrindo o disco, mas não consegui a liberação da família dele (risos). Eles acharam um absurdo o Tom Jobim falando uma grosseria. Mas meus amigos são filhos da Elis e acharam superengraçado. Me perguntaram: “Você vai começar o disco com alguém falando que é uma bosta?”. Falei: “Vou” (risos). É a Elis Regina, porra — conta o rapper de 57 anos em entrevista ao GLOBO concedida na sala do seu apartamento, na Praia do Flamengo, na Zona Sul do Rio, na tarde da última segunda-feira (6).
— Ela está gravando um clássico, “Águas de março”, e chamando a música de “bosta”. É sobre não se levar tão a sério. Minha mãe odiava esse meu olhar, quando eu falava “Ah, essa merda desse show”. Ela dizia para eu não falar assim do meu show — completa.
Neste sábado (11), D2 se apresenta no festival Clássicos do Brasil, na Marina da Glória, com uma celebração a esse disco que misturou “pop rock, rap, samba, raiz e inovação”:
— A música brasileira é feita de mistura porque o povo brasileiro também é. A nossa base é isso. Tirando os povos originários que estavam aqui, de lá para cá a gente é uma pitada de tudo. Então, na nossa cultura, vale tudo. Cabe tudo, para o bem e para o mal.
Capa da edição desta quinta, 9 de outubro, do caderno Rio Show — Foto: Foto: Leo Martins/Agência O Globo
Veja, abaixo, mais destaques da entrevista:
MARCELO D2 — Me arrependo, mas faria de novo: eu era muito briguento, briguei com todo mundo (na época do disco, no começo dos anos 2000). Eu acho que podia ter feito a minha vida e a vida das pessoas mais fácil se não tivesse brigado com tanta gente. Mas eu fui o que eu pude ser. Fiz o meu melhor.
E pode parecer um saudosismo, mas eu sinto muita falta do rap. O rap se transformou em outra coisa. Assim como qualquer movimento revolucionário, o rap foi engolido pelo sistema e hoje em dia ele faz parte do sistema, não é mais um “outsider”. Eu, enquanto um “outsider”, um cara que gosta de viver à margem dessa sociedade, não me sinto mais tão representado. Tem muita coisa boa, mas o rap de maneira geral já virou “mainstream”. Sinto muita falta do rap “undergorund”. Ele ainda existe, mas é quase uma cópia do que foi feito naquela época. Sinto falta desse “movimento rap”, até porque eu vou ficando velho e não faço mais parte dessa parada, também, né? Nem me interessa muito mais.
Quando ouvi “A procura” pela primeira vez, no avião, voltando de Los Angeles (onde ele foi gravado) pensei: “Fodeu, a gente não vai tocar em lugar nenhum” (risos). Porque, na época, ou era pop rock ou pagode. Mas estava completamente errado. Ele estourou e acabou tocando em todas as rádios porque, ao contrário de ser nichado, era aberto: tinha pop rock, rap, samba, raiz, inovação…
A música com o meu filho (“Loadeando”) foi uma outra mudada de rota na minha carreira. Eu era o “maconheiro rebelde”, tinha acabado de sair da prisão, estava cheio de estigmas. Apareci cantando uma música com meu filho, falando sobre evolução e morte, que na verdade foi uma homenagem para o meu pai, que tinha acabado de morrer. Isso mudou muito o olhar que a galera mais velha e conservadora tinha de mim. Eles disseram: “Esse maconheiro aí também é pai de família. O cara é maneiro”. Esse disco deu uma limpada na minha barra, literalmente.
Marcelo D2 leva “A procura da batida perfeita” para o palco do festival Clássicos do Brasil, no Rio — Foto: Leo Martins/Agência O Globo
Assim que achei o nome, antes de começar a fazer o disco (percebi que era um trabalho tão importante). Demorei seis meses. Peguei todo o dinheiro da gravadora, que ficava perguntando: “Cadê o disco? Cadê o disco?”. Eu dizia que estava quase pronto, mas não tinha escrito nenhuma frase, porque queria achar o nome. Eu sabia qual era o tema, essa coisa de ter um novo ritmo brasileiro, mas tinha na minha cabeça que o nome ia me dar um norte. Mexendo nos meus vinis, encontrei o “Looking for the perfect beat”, do Afrika Bambaataa, e a tradução veio instantaneamente: “A procura da batida perfeita”. Deu aquela luz. A partir desse momento eu sabia que ia ter um disco superespecial.
Todo mundo foca na “batida perfeita”, porque parece ser o tema principal da frase, mas para mim não. A procura é o principal. Sou um cara superinquieto, todos os dias acordo e procuro uma coisa nova para fazer um propósito. Isso virou um mantra na minha vida. Qual é o meu propósito aqui? Não é a batida perfeita. É a procura.
Eu faço um tipo de música que serve para entretenimento, mas não é feita para isso. O que eu faço é música de combate, música para pensar. E, para isso, ela precisa de muito conteúdo. Eu venho de uma escola do rap e do punk rock que conteúdo vale mais que qualquer coisa. A gente precisa dele muito mais do que ter um belo refrão e a música tocar para caramba. Minha meta sempre foi essa: fazer música com conteúdo. O rap americano tinha a cultura do sample e já buscava nos grandes como James Brown e Marvin Gaye. Isso abriu meus olhos para a música que vinha antes de mim.
Lembrando que o rap era uma música que não existia no Brasil. Cantar rap era “coisa de americano”. O jeito de fazer rap brasileiro era samplear os mais velhos. Não se escreve o futuro sem olhar para o passado, não existe. É o trabalho que faço hoje com o “Novo samba tradicional”, a metáfora do arco e flecha: quanto mais a gente puxa para trás, mais lá na frente vamos atingir. É burrice achar que sabemos de tudo e que não precisamos olhar para trás e reverenciar os mais velhos e agradecer o caminho que foi aberto. A gente não vai reinventar a roda, ela já está aí, não dá para ignorar. Então, vamos ver como a gente consegue fazer ela rodar melhor.
Só o Peck (Mecenas, idealizador do “Clássicos do Brasil”) para me convencer a fazer esse show. Eu queria esperar o disco fazer 25 anos (em 2027), mas ele me convenceu falando da importância da música enquanto história. Ela é nossa parceira na vida em momentos alegres, difíceis, tristes… e esse disco foi especial para mim, assim como foi para muita gente também. A ideia é contar a história de como cheguei até “A procura”, então pode ter até Planet Hemp nessa caminhada.
Eu fiz um show de “A procura” em um festival (na 1ª edição do Doce Maravilha, em 2023), só que no dia choveu para cara***. Eu falei que ia ser épico, mas não esperava que fosse tão épico, porque foi bíblico (risos). O mar se abriu, caiu um dilúvio. Foi inacreditável. Então espero que esse show agora seja mais épico, mas por outros motivos, né?