O argumento do ‘filme’ é assustador e à medida que vamos assistindo às filmagens vamos ficando ainda mais incrédulos. Tudo terá começado pela graça do ano de 2020, quando as medições da «qualidade do ar ambiente revelaram níveis alterados de formaldeíco e de compostos orgânicos (COVs), reforçando a perceção de risco e a necessidade urgente de ação». A cena passa-se, na vida real, na área do Serviço de Dermatovenereologia do Hospital de Egas Moniz, da Unidade Local de Saúde de Lisboa Ocidental (ULSLO).
Consultando o Dr. Google, percebemos que o formaldeíco é um «gás incolor e tóxico, irritante, sensibilizante da pele que pode causar problemas respiratórios e cancro, sendo perigoso em contacto com a pele, olhos e por inalação». Quatro anos depois, em março de 2024, o Serviço de Utilização Comum dos Hospitais (SUCH) fez testes no local e concluiu pela existência de «elevados valores apresentados na Qualidade do Ar». Mais uma vez, aparentemente, pouco ou nada se fez, mas, a 26 de setembro do mesmo ano, o Serviço de Segurança e Saúde no Trabalho (SSST) deslocou-se ao local para tentar perceber os elevados valores apresentados. A 9 de outubro, a técnica Ana Realinho, do SSST, apresentou um relatório, emitindo o seu parecer: «Todo o edificado requer obras de reabilitação profundas, com urgente necessidade de remoção da cobertura em fibrocimento. A existência deste material no telhado inviabiliza a possibilidade de intervenção no teto falso de aglomerado de cortiça e limita toda a possibilidade de reabilitação do edifício. Urge a realização de obras de requalificação do sistema de drenagem de águas residuais, assim como a melhoria dos sistema de ventilação de todo o edifício».
Ana Realinho não podia ser mais clara: «Tendo em conta a informação apresentada, considera o Serviço de Segurança e Saúde no Trabalho (SSST) que não estão reunidas as necessárias condições de segurança, saúde e salubridade nos diferentes espaços onde atualmente se encontra instalado o serviço de Dermatologia do Hospital Egas Moniz, podendo comprometer a segurança de todos profissionais/utentes que desempenham atividades regulares neste espaço. Face ao exposto, é parecer deste SSST que o Serviço de Dermatologia deva ser realocado com caráter de urgência, quer num espaço existente no hospital ou num espaço provisório (por exemplo contentores)».
Grávidas afastadas
Passemos agora a palavra aos profissionais do serviço de Dermatovenereologia do Egas Moniz, que escreveram uma carta, datada de 30 de julho do corrente ano, à ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS). Na missiva, os profissionais do Egas Moniz fazem a cronologia dos acontecimentos, e reforçam que «a divulgação deste relatório [de Ana Realinho] aos profissionais do serviço gerou uma onda de preocupação e angústia. Perante este cenário, a SSST foi questionada acerca da segurança da permanência dos profissionais no edifício, com ênfase para a médica interna de formação específica, no final da sua gravidez. Na sequência dessa interpelação, a colega acabou por ser afastada do serviço de Dermatovenereologia pelo SSST por risco toxicológico, obrigando-a a interromper a sua formação médica. Quando questionados acerca das medidas de proteção foram recomendadas medidas vagas, incluindo utilização de máscara P2».
Continuemos na cronologia enviada ao MTSSS. Em novembro de 2024, o Sindicato Independente dos Médicos (SIM) «ativa o processo, exigindo intervenção urgente». Para se ter uma ideia, os relatórios feitos contêm várias fotos, onde se fala, entre outras ‘desgraças’, da presença de larvas, excrementos de roedores, e até um «cadáver de um animal (não identificado)» no espaço superior entre o teto falso e o telhado em fibrocimento.
A Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) foi chamada devido à «ausência de implementação das medidas de mitigação vigentes no relatório da SSST de outubro». Segundo os profissionais que assinam a missiva, a ACT visitou o serviço «sem realizar medições independentes, baseando-se exclusivamente em relatórios da ULSLO». A visita aconteceu a 17 de janeiro do corrente ano. A 25 de fevereiro, dizem os profissionais, «a ACT comunica medidas mínimas (câmara de extração localizada e limpeza de esgotos diária) e menciona suposta futura remoção programada do telhado de fibrocimento e das placas de cortiça. Sugeriram ainda nova medição dos níveis de COVs».
O Sindicato dos Médicos Independentes regressa, de novo, à carga, pedindo que o conselho de administração da ULS Lisboa Ocidental implemente as medidas «contidas no parecer de 9 de outubro [de Ana Realinho]».
Alhos e bugalhos
A ULS de Lisboa Ocidental responde: «Comungamos, de forma genérica, com as preocupações nele expressas, nomeadamente em que no seio da ULSLO seja sempre garantida a melhor qualidade e segurança para os utentes e profissionais». Sobre os perigos denunciados, a ULS Lisboa Ocidental explica que «a necessidade de se intervir nas instalações do Serviço de Dermatologia ja estava identificada e já foi alvo da elaboração de um projeto de intervenção, pelo que não nos revemos na alegada inércia relativa à mesma».
Estamos a falar de profissionais de Saúde e não de professores de português, mas parece evidente que as perguntas não jogam com as respostas. «Acresce que, e reconhecendo e não se questionando a necessidade da intervenção mais profunda, foram tomadas medidas para melhorar as condições para utentes e profissionais, enquanto a mesma não se concretizasse», diz o conselho de administração que acrescenta que «a intervenção necessária foi alvo de atribuição de financiamento via PRR, através de aviso publicado no passado dia 19 do mês corrente, pelo que todo o projeto se irá desenvolver nos próximos meses».
Este aviso descansou os profissionais que trabalham no Egas Moniz? Negativo. Na carta de 30 de julho, dizem: «A gravidade desta situação é indesmentível. Trabalhamos há vários anos num espaço em que nos sentimos inseguros e que há mais de 1 ano está oficialmente considerado como tal, onde: Grávidas e lactantes não podem entrar; A formação médica é interrompida; A qualidade do ar é duvidosa e a estrutura física está contaminada e degradada; Não há diálogo institucional, e os riscos em que incorremos não nos são explicados; Os profissionais sentem-se desconsiderados. Dois colegas recém-especialistas abandonaram o serviço neste contexto, e é expectável que concursos futuros fiquem desertos, dada a reputação que a situação já atingiu. Sabemos ainda que existem outros profissionais no limite da sua resistência», para concluírem que «continuamos a trabalhar sem saber o que respiramos, onde pisamos, nem se amanhã será seguro regressar. Perante a exposição prolongada a substâncias potencialmente tóxicas e cancerígenas, importa perguntar, com toda a seriedade: quem se responsabilizará, no futuro, se algum de nós desenvolver uma doença grave, como uma neoplasia?».