Os europeus suspeitam que Donald Trump, recorrendo a uma espécie de cilada bem conjurada, os esteja a empurrar para um beco sem saída.  Pasmem-se os mais incrédulos, Trump, acabado de sair de um encontro com Zelensky, em Nova Iorque, escreve nas redes sociais que a guerra da Rússia é um desastre e que a Ucrânia pode vencer. Vai ainda mais longe, “se devidamente apoiada a Ucrânia poderá inclusivamente recuperar todos os territórios que lhe foram ilegalmente anexados”. Tais declarações causaram, como de resto seria de esperar, o pânico geral em Moscovo, levando o tão infatigável quão satírico, Dmitry Medvedev a publicar quase de imediato uma postagem dizendo que Donald Trump mudará de opinião e que voltará a apoiar a causa da Rússia, aliás como sempre tem feito. Estará desta feita Donald Trump a ser verdadeiro ou a usar somente um artifício destinado a convencer Putin a sentar-se à mesa das negociações? São dúvidas legítimas e que assaltam igualmente a mente dos líderes europeus e aumentam os níveis, já em si altos, de desconfiança.

De qualquer forma o presidente norte-americano coloca uma condição prévia: A Ucrânia sairá vencedora desde que os europeus a apoiem: di-lo, pois Trump pretende continuar a disponibilizar armamento produzido nos EUA, desde que a NATO pague. Entenda-se, os países europeus paguem, servindo a NATO como uma espécie de hub logístico. Em linguagem comum Trump “chuta a bola para o meio-campo europeu”.

Hoje já não restam dúvidas, o objetivo último da invasão da Ucrânia sempre foi a sua sujeição integral, a sua completa extinção enquanto estado soberano. Porém, muito perto de terminar o quarto ano desta guerra sangrenta, a Rússia tem na sua posse efetiva menos território ucraniano do que tinha no Verão de 2022. No espaço marítimo do Mar Negro, a Rússia sofre uma derrota notável, diria mesmo com sabor amargo a humilhação. A sua grande base naval de Sebastopol deixou pura e simplesmente de ser viável face aos ataques dos drones de superfície e subsuperfície ucranianos e aos mísseis das classes storm shadow, ATACMS e Neptuno. A esquadra russa do Mar Negro acabou acantonada de uma forma embaraçosa no extremo leste deste mar interior – no Porto russo mais longínquo, em Novorosiysky. A tão anunciada ofensiva russa de verão redundou num autêntico fiasco. A Ucrânia recupera cerca de 320 quilómetros quadrados no Donetsk maioritariamente nas regiões de Pokrovsk e Dobropillia justamente onde as forças da Federação Russa realizam o seu ataque principal. Muitas das refinarias russas desde finais de junho passado têm vindo a ser alvo de constantes ataques por parte da Ucrânia. Na Crimeia, sistemas de radar de longo alcance, armas antiaéreas, bases navais e aéreas têm vindo a ser fustigadas pelos drones e mísseis ucranianos expondo colossais vulnerabilidades.  O complexo logístico, os seus armazéns e as suas linhas de comunicações ferroviárias e rodoviárias têm sido atacadas praticamente todas as noites. As refinarias não conseguem ser repostas a funcionar – e quando o são voltam a ser atacadas e nas estações de serviço o combustível escasseia ou deixa mesmo de existir. A economia russa vai dando sinais inequívocos de declínio.

É minha convicção que a Ucrânia teria logrado uma vitória militar em finais de 2022 ou mesmo mais tarde no Verão de 2023 caso tivesse obtido dos seus aliados ocidentais tudo aquilo de que necessitava naqueles momentos e sem quaisquer tipos de limitações de emprego, vulgo “caveats”. Infelizmente, excelentes oportunidades foram perdidas e a tão necessária iniciativa no campo de batalha foi-se gradualmente transferindo para o lado russo. Do que se tratou então, podemos dizê-lo sem meias palavras, foi mesmo falta de coragem e um medo irracional de uma potencial escalada estribada nas constantes ameaças que a Rússia veiculava nas suas operações de informação – propaganda – visando, em essência, inibir o bloco ocidental de apoiar eficazmente a Ucrânia. Foi um erro crasso não ter aproveitado a iniciativa, pois esta guerra sangrenta cujo desfecho ainda não se descortina já poderia ter sido concluída favoravelmente. 

Justamente porque se encontra ciente de que os EUA de Donald Trump não estarão disponíveis para continuar a apoiar com fundos próprios o esforço de guerra ucraniano, o chanceler alemão, Friederich Merz, propõe a utilização pela Ucrânia de cerca de 170 mil milhões de euros dos fundos soberanos russos congelados e depositados maioritariamente no Euroclear belga, substituindo-os por obrigações emitidas pela União Europeia. Altera até mesmo o anterior posicionamento alemão, porque tem para si que a Casa Branca não mais apoiará financeiramente a Ucrânia; e assim sendo, presume, na qualidade de maior economia da EU e terceira do mundo, que o fardo mais pesado possa mesmo recair sobre a Alemanha.

Os mais altos dirigentes europeus reuniram-se na semana passada em Copenhaga para discutir esta e outras propostas. Esta proposição, diga-se de passagem, é muito semelhante à advogada pelos EUA que são claramente favoráveis ao confisco puro e duro dos fundos russos – e à sua colocação à disposição da Ucrânia. Zelensky, antecipadamente, fez saber que precisa, para financiar o esforço de guerra ao longo de 2026, de cerca de 120 mil milhões de dólares. À Ucrânia faltam 60 mil milhões que espera venham a ser financiados pelos seus aliados europeus. Esses 60 mil milhões precisam de ser rapidamente encontrados. O tempo urge e a colaboração neste esforço financeiro por parte dos EUA está completamente posta de parte. Definitivamente trata-se de um problema para o qual que os europeus e muito particularmente a União Europeia terão de encontrar solução. Sabemos que tal proposta, apontando para o confisco dos fundos soberanos russos e sua substituição por obrigações emitidas pela UE, a ser aprovada, mais não é do que uma forma engenhosa de ultrapassar imperativos de ordem jurídica e que causará grande desconforto e apreensão no mundo russo. Dmitry Medvedev já fez saber que perante tal decisão a Rússia recorrerá a todos os meios legais nacionais e internacionais e mesmo não legais para reaver os seus fundos e ameaça punir seja de que forma for os infratores que desrespeitem as leis internacionais. Imagine-se A Rússia a evocar a lei internacional!

A grande questão que aqui se coloca é de saber até quando vamos ser complacentes com um ditador sanguinário, procurado pela justiça internacional, que não se importa de condenar diariamente à morte populações indefesas em nome de objetivos claramente fora de tempo como o de reconstruir um império e de readquirir o estatuto de superpotência a nível mundial. Por que razão persistir em respeitar preceitos legais e honorabilidades comportamentais com quem se comporta como um verdadeiro criminoso sem escrúpulos. “Deviat a solitis regula cuncta viis”, ou seja, “toda a regra se desvia dos caminhos habituais”, o mesmo é dizer: “não há regra sem exceção”. Já assim o era na antiga Roma onde se aceitava que, mesmo as leis ou regras mais universais, podem ser alvo de exceções e como tal não se aplicam rigidamente a todas as situações.  Quem faz a lei é o homem e como tal é ao homem que utilizando o senso comum compete definir as exceções. E esta deverá constituir mesmo uma exceção. Há muito tempo que os fundos soberanos russos deveriam ter sido confiscados. Efetivamente ainda não o foram; todavia é minha convicção que lá chegaremos e assim se fará justiça, através da aplicação da exceção à regra, no uso do mais elementar bom senso.

Putin persevera em condicionar a nossa vida, continua a testar a nossa capacidade de reação. A ameaça de drones de vigilância passou a ter uma presença diária junto aos aeroportos europeus. Na Moldávia tentou. Mas ainda não foi desta feita que conseguiu colocar no respetivo governo um procurador seu. A Geórgia está de novo em estado de grande agitação: em Tbilisi, no fim de semana passado, pessoas de todo o país reuniram-se para protestar contra o partido pró-Rússia no poder – os insurgentes chegaram a invadir o pátio da residência presidencial. As pessoas gritavam “Revolução”, segurando bandeiras georgianas e cartazes com slogans antigovernamentais. Por quanto mais tempo vamos tolerar tudo isto? Confisquem-se de uma vez por todas os fundos soberanos russos e entreguemo-los à Ucrânia.

Só assim Putin entenderá que a Ocidente algo mudou radicalmente e que, afinal, também conhecemos e dominamos a linguagem da força.

Major General//Escreve à sexta-feira no SAPO