Mas a literatura não é também para causar desconforto?

Sim e é o que me interessa. Porém, hoje eu acho que é cada vez menos. A literatura é cada vez mais uma literatura de empoderamento, por exemplo. Uma literatura confortável, em todos os níveis, é uma literatura da confirmação. E tem a ver muito com a leitura na internet. Ao longo do tempo, sem perceber, começamos a ter uma relação com o mundo que é uma relação que não admite contradição, que não admite desconforto. O próprio algoritmo proporciona isso. Você fica naquela bolha e ele te entrega só aquilo que você quer pensar, não te entrega nenhum pensamento diferente. E é um suicídio, porque na verdade, intelectualmente, é um empobrecimento incrível, você passa a ver um mundo que é um mundo bidimensional. Essa é uma questão política que me interessa muito. E agora com a coisa da inteligência artificial, é muito interessante, porque se o ser humano abre mão das contradições e do real, do que é insuportável, do que é, de fato, o outro, que é aquilo que você não quer ver, se é que há uma guerra ali entre a inteligência artificial e o ser humano, ela está perdida, porque a única chance que você tem é entender que tem um desconhecido, que tem um mistério no mundo, que tem alguma coisa que te escapa. Porque a gente vai morrer, a morte é uma delas.

Sobre um dos assuntos centrais do livro, que é a ditadura, como é que você analisa a ótica da ditadura hoje no Brasil diante de tantos acontecimentos recentes na nossa história política?

O que é mais impressionante no negócio da ditadura é que, por exemplo, eu nasci em 1960, então, eu passei a infância inteira na ditadura e, depois, na pós-ditadura e com a Constituinte e tudo mais, você teve uma ideia de aquilo ali era um mundo passado, que aquilo não existia. E, talvez, por eu não ter contato com pessoas que eram, são pró-ditadura e tudo mais, eu achei que aquilo, para mim, foi uma surpresa, uma surpresa total, quando eu comecei a ver as primeiras manifestações, antes da eleição do Bolsonaro, de pessoas dizendo, volta, ditadura ou militares, por favor. Foi uma surpresa incrível, porque eu me lembro que eu estava numa feira, num festival na Argentina e os argentinos me perguntavam, o que está acontecendo? Vocês não enterraram essa porcaria? Mas para mim foi uma surpresa que mostra a minha ingenuidade política, histórica e tudo mais. Eu não tinha entendido nada, porque isso estava aí, estava meio camuflado, submerso por um verniz de democracia e por um esforço de democracia incrível, mesmo agora, que, por mais que haja um monte de problemas, você pode discutir a coisa do Alexandre de Moraes, mas é incrível, porque, de fato, esse cara salvou o Brasil. Mas, em relação ao livro, é curioso que, também, isso no Brasil se manifestou desse jeito, mas é uma onda mundial, e isso é muito assustador. Essa onda do que foi chamado de pós-verdade, um mundo que tem uma rede de sentido que regula o mundo, de repente, esses caras começam a minar essa rede de sentido, inverter, distorcer. E as palavras passam a dizer o oposto do que elas significam. E isso foi muito importante para esse livro, porque era uma espécie de um lodaçal semântico. De repente, defender a democracia significa defender a ditadura. Defender a liberdade de expressão significa defender a censura, é um cenário de pântano e dar um passo atrás, porque nesse pântano eu não tenho saída, eu não tenho como reagir politicamente, intelectualmente É um lugar que está feito para fazer você se perder, ficar totalmente desacorçoado, totalmente impotente. É ver um pouco a origem dessa inversão numa situação que é muito pontual, que é de um pai e de um filho, em que o pai que deveria representar a lei passa a representar o crime e que obriga a criança que está com o pai a representar a lei. A substituição começa aí. Isso tem a ver com uma inversão que parece que era como se fosse um ovo da serpente ali. O reflexo da ditadura, essa ferida não foi curada. E essa relação entre um pai e um filho, que tem a ver com a minha relação com meu pai, biográfica, mas que é um pouco a origem dessa coisa e da destruição, da autodestruição, da coisa do cara que vai colonizar a Amazónia para destruir e um sentido heróico nisso.