A China é inigualável em megaconstruções há muito tempo. Aliás, o domínio do país asiático nesse ramo é tão enorme que ele ostenta o arranha-céu abandonado mais alto do planeta. O que poucos poderiam ter previsto era o tamanho de muitos desses gigantes dos céus. E não estamos exagerando, afinal, em alguns casos, até o elevador é um verdadeiro incômodo. Desse problema surgiu um novo “emprego”: o entregador do entregador.


(Imagem: Robert Anders + Picryl)

Economia improvisada em arranha-céus

O jornal The New York Times noticiou há algumas semanas a saga de fazer entregas em um prédio de simplesmente 70 andares. Em Shenzhen, cidade símbolo do experimento econômico chinês e agora um vibrante centro de 18 milhões de habitantes, a vida cotidiana em arranha-céus como o SEG Plaza gerou um fenômeno incomum que combina engenhosidade, precariedade e espírito empreendedor. Este edifício gigantesco abriga milhares de escritórios, o que transformou o simples ato de entregar o almoço em um desafio logístico.

Nos horários de pico, a espera por um elevador pode levar até meia hora, criando uma dor de cabeça para os entregadores tradicionais, o que prejudica sua capacidade de concluir os pedidos. A resposta a essa dificuldade tem sido o surgimento espontâneo de um exército de entregadores improvisados, adolescentes e aposentados que se oferecem para atuar como intermediários: eles recebem as sacolas de comida na entrada e, em troca de uma pequena comissão, percorrem o último caminho até o cliente.

Uma profissão inesperada

O exemplo de Li Linxing, um jovem de 16 anos que passa o dia todo em frente ao prédio para ganhar cerca de 100 yuans por dia (R$ 75), resume bem essa microeconomia emergente. Por apenas 2,33 yuans por pedido (R$ 1,75), Linxing abre caminho entre dezenas de colegas, espera em elevadores lotados e percorre corredores labirínticos para entregar refeições, relata o The New York Times.

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Não é um emprego estável nem bem remunerado, mas representa uma oportunidade de renda rápida e direta, algo que em Shenzhen é suficiente para atrair tanto estudantes em férias quanto idosos que não conseguem encontrar outra maneira de ganhar a vida. A mecânica é simples: o entregador chega de moto, entrega a sacola, escaneia um QR code e continua sua rota, delegando assim a parte mais demorada e trabalhosa para o “entregador” do entregador.


Entregador entrega a entrega para outro entregador entregar a entrega para quem fez o pedido (Imagem: Daryl Lim/SPH Media)

O caso de Shao Ziyou e sua esposa ilustra como esse modelo evoluiu para estruturas organizadas. Conhecido como o primeiro a se estabelecer na entrada do SEG Plaza, Shao construiu uma rede de ajudantes aos quais terceiriza entregas, ficando com uma pequena parcela de cada pedido. Em um dia típico, ele coordena entre 600 e 700 pedidos, transformando o que começou como um favor ocasional a um entregador perdido em um sistema logístico paralelo.

Os entregadores reconhecem e confiam em Ziyou, o que lhe confere uma posição dominante sobre outros concorrentes que tentam capturar pedidos oferecendo tarifas mais baixas. A pandemia de 2020, que paralisou o mercado de e-commerce do prédio, consolidou essa prática, aumentando a dependência da entrega de alimentos. O aumento do número desses intermediários gerou dinâmicas de rivalidade e conflitos frequentes. Erros de entrega levam a sanções, pois os entregadores originais são multados pelas plataformas caso os pedidos não cheguem, e essa pressão é transferida para os intermediários.

O jornal NY Times noticiou que discussões de rua sobre direções erradas ou clientes insatisfeitos se tornaram comuns, embora geralmente sejam resolvidas de forma pragmática. Ao mesmo tempo, a concorrência acirrou o jogo: alguns intermediários reduzem os preços por pedido, enquanto outros desenvolvem táticas para otimizar suas rotas, como esperar para acumular várias sacolas antes de pegar o elevador.


O gigantesco SEG PLaza (Imagem: Charlie Fong)

A fronteira da legalidade

A natureza informal deste trabalho também acarreta riscos e limitações. Ou seja, nenhum dos intermediários possui contratos, seguros ou direitos trabalhistas; é uma atividade tolerada na prática, mas fora de qualquer estrutura regulamentada. Uma brecha que permitiu até mesmo a participação de crianças, algumas delas em idade escolar, atraídas pela tendência viral nas redes sociais. Imagens de crianças uniformizadas perseguindo entregadores geraram tanta polêmica que as autoridades locais intervieram, proibindo o emprego de menores por questões de segurança.

Desde então, apenas maiores de 16 anos podem continuar, embora as condições precárias continuem sendo a norma. O que está acontecendo no SEG Plaza também reflete o status de Shenzhen como um laboratório permanente de soluções improvisadas para problemas práticos. A cidade, pioneira na abertura da China ao mercado global, transformou cada obstáculo em uma oportunidade para criar novos negócios, mesmo que frágeis e mal remunerados.

Essa espécie de “economia gig dentro da economia gig” demonstra a adaptabilidade de seus habitantes, mas também a vulnerabilidade daqueles que participam de um modelo baseado no imediatismo e no baixo custo. Nas cenas cotidianas de intermediários carregando seis ou sete sacolas em cada mão, aposentados que veem isso como uma forma de se manterem ativos ou adolescentes em busca de dinheiro rápido, desenha-se um microcosmo que combina engenhosidade com vulnerabilidade.

A história dos entregadores substitutos de Shenzhen revela tanto a criatividade de uma cidade que nunca para quanto as falhas de um sistema que transforma necessidades logísticas em (sub)empregos temporários. A eficiência com que resolveram o problema dos elevadores lentos e cheios de um arranha-céu demonstra a agilidade da economia informal da China, mas também levanta questões sobre o futuro daqueles que sustentam essa dinâmica sem contratos, sem direitos e com remunerações irrisórias.

Em outras palavras, o que parece ser uma solução engenhosa para o engarrafamento do meio-dia se torna, após uma análise mais detalhada, um lembrete de como a economia moderna depende cada vez mais de engrenagens invisíveis, uma distopia de pessoas correndo entre andares intermináveis, sustentando a vida diária das metrópoles manualmente e sem garantias.

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