Em entrevista à agência Lusa, a propósito do seu último romance, a autora explicou que quis explorar “vários tipos de exaustão” — desde a laboral à física e emocional, passando pela da própria natureza.


“Há a exaustão de quem trabalha numa pedreira, mas também da própria pedreira, da natureza que é devastada, que já não aguenta mais e acaba por tudo aquilo ser uma consequência trágica do que os homens lhe fizeram: o desmatamento, a devastação total”.


O romance aborda também “a exaustão de uma mulher que quer parecer nova à viva força” e “a exaustão do organismo que já não aguenta mais”, numa narrativa em que o corpo e o meio ambiente partilham o mesmo desgaste.


A história começa com um homem bêbedo a ser transportado numa carroça, feito prisioneiro e condenado, sem saber, a trabalhos forçados numa pedreira escondida, onde acaba por conhecer toda uma galeria de personagens grotescas, que vão de um cego violento até uma mulher sem nariz por quem todos os homens se apaixonam.


O sentimento de “despertença” surge como contraponto, um sentimento que a autora confessa que lhe toca pessoalmente.


“Interessa-me muito perceber onde é que a pessoa se sente em casa, onde é que uma pessoa sente que pertence, onde sente que já não restam mais planos de fuga, talvez porque tenha ali uma missão, um propósito de vida”, afirmou, descrevendo o espaço da pedreira — cenário central do romance — como “uma espécie de campo de refugiados, onde há um grande desinvestimento em viver”.


As personagens foram surgindo, desde logo a ideia de uma personagem visivelmente e obviamente desfigurada que pudesse ser alvo de um grande interesse por parte dos homens, mas também de um cego cruel, de homem que vive numa espécie de colmeia, “sendo ele a rainha-mãe”, e de um alcoólico delirante e com incompetências de comunicação e socialização.


“São personagens perigosas, porque já caíram num estado de desalento que é um grande perigo para as próprias sociedades. Quando as sociedades se desencantam é muito perigoso”, destacou a autora.


Mas são também personagens marcadas pela “ambivalência”: “Interessava-me uma personagem que é cruel, mas que ao mesmo tempo cura, que trata das pessoas da comunidade, fornecendo-lhes carne, mas ao mesmo tempo trata dos mortos, que lhes contamina a água, mas por outro lado, no fundo, é ela que garante a funcionalidade daquela comunidade”.


E aqui chega-se a outro tema de Ana Margarida de Carvalho, que é “o tema do cerco, o tema das comunidades fechadas onde as regras se vão subvertendo”, criando novas lógicas de sobrevivência.


A escritora reconhece que este romance tem muitas das suas marcas, como o movimento, pois todos os seus romances “começam em andamento, que é uma ideia também muito simbólica”, e a que este “A chuva que lança a areia do Saara” não escapa.


O romance abre com o protagonista a caminho da pedreira e, nesse percurso, entre divagações mentais e conversas com um amigo imaginário, conduz o leitor por “um terreno pantanoso, o terreno da sugestão”, onde “nada é o que parece”.


“Quem anda, quem viaja, deixa para trás, torna tudo passado. E é uma personagem que vai delirando, que vai buscando, de uma forma muito divagativa e derivativa, buscando as suas referências, as suas memórias, que já estão um pouco confusas porque ele está alcoolizado em fase terminal. Esta é outra das exaustões, a exaustão do organismo que já não aguenta mais, os seus órgãos estão à beira do colapso porque não aguentam mais essa condição”.


O título do livro é retirado de uma música escrita por Caetano Veloso, intitulada “Reconvexo” e que começa com a frase “Eu sou a chuva que lança a areia do Saara/Sobre os automóveis de Roma”.


A escolha deste título prendeu-se com o “efeito de espelho” que o livro tem, em que “todos os atos das personagens se refletem uns nos outros”, uma ideia que se estende à metáfora da tempestade de areia do Saara que atravessa continentes: “Uma convulsão de areias no deserto acaba por se refletir aqui na Europa, nessa película mate que cobre os carros e até nos provoca alergias”.


“E `reconvexar`, uma palavra que não existe, também me seduz muito. Podia existir, mas não existe, e seduz-me muito esta capacidade de criar novas linguagens e novas palavras”.


Para Ana Margarida de Carvalho, tudo isto “é um exclusivo da ficção, porque a verdade absoluta não existe”.


“A maior verdade absoluta do mundo é que ela não existe, e a segunda será que a verdade mais fiável é aquela que se encontra na ficção, porque está livre de dogmas, de ideologias, de intenções. É só a nossa verdade com que nós construímos a mentira”.