A orquestra da La Fenice, uma das mais emblemáticas casas de ópera italianas, atravessa uma crise interna. Há já vários meses que os músicos pedem que seja revogada a nomeação, para o posto de directora musical, de Beatrice Venezi, alegando que esta apoiante da primeira-ministra nacionalista Giorgia Meloni não tem currículo para ocupar o cargo. Agora, a orquestra prepara-se para avançar com uma greve: será na próxima sexta-feira, dia 17, data da primeira récita de Wozzeck, ópera centenária do austríaco Alban Berg que encerrará a temporada 2024/2025 da instituição veneziana.

Na semana passada, a orquestra manifestou o seu desagrado perante a nomeação de Beatrice Venezi, e com a forma pouco transparente como terá decorrido o processo de selecção, numa carta aberta enviada ao director-geral da La Fenice, Nicola Colabianchi, e publicada pela imprensa italiana. Colabianchi sairia, na quinta-feira, em defesa da maestrina e pianista de 35 anos, sugerindo que a contestação estará a ser alimentada por “factores extramusicais”. “As suas ideias políticas, o facto de ser mulher… Creio que há aqui um certo sexismo”, disse, citado, por exemplo, pelo jornal espanhol El País.

Os delegados sindicais da casa de ópera, como escreveram num comunicado citado pelo diário italiano La Repubblica, “rejeitam veementemente as acusações infundadas e ofensivas de sexismo”. “Durante a reunião de mais de quatro horas realizada na passada quarta-feira, na presença do presidente da Câmara de Veneza, não foi feita qualquer referência, directa ou indirecta, ao género ou às posições políticas da recém-nomeada directora musical. A discussão teve inteiramente que ver com o seu currículo artístico”, assinalam, acrescentando que “as acusações de sexismo representam uma tentativa inaceitável de retirar legitimidade à dissidência interna”.

Uma “petição que pede a demissão de Colabianchi reuniu mais de 500 assinaturas em poucas horas”, escrevia esta manhã o La Repubblica. Um abaixo-assinado paralelo com vista ao afastamento de Venezi contava já, por sua vez, com “mais de 15 mil assinaturas”.

​“Caso a nomeação de Venezi não seja revogada por Colabianchi, a luta dos mais de 300 trabalhadores da casa da ópera, incluindo os 175 membros da orquestra e do coro, intensificar-se-á. Os músicos dizem-se prontos para boicotar todas as cinco récitas de Wozzeck (…) e até o concerto de Ano Novo”, refere o jornal italiano no mesmo texto, acrescentando ainda que os músicos pretendem assinalar o dia da greve com uma assembleia pública no centro histórico de Veneza e, ainda, com um concerto gratuito.

“Os pedidos de autorização foram já feitos à Câmara Municipal”, relata o diário, recordando que “os músicos também necessitam de luz verde da direcção para tocar ao ar livre” — não será, portanto, crível que a actuação avance.

“Quase todos a consideram incompetente”

Diz a direcção-geral da La Fenice que Beatrice Venezi tem um currículo “óptimo”. A instituição, afirmou Nicola Colabianchi no decurso desta semana, buscava uma pessoa “jovem e mulher” para mudar o perfil da direcção musical. Venezi, uma influencer com mais de 80 mil seguidores no Instagram, “tem uma forte capacidade comunicativa”, acrescentou. “Faz falta inovação, fazem falta rostos novos, faz falta alguém que saiba contar a ópera aos jovens”, concluiu, citado pelo El País, que lembra que esta é a primeira vez que o teatro de ópera veneziano é dirigido por uma mulher.

​O jornal espanhol recorda também outras circunstâncias em que foram postas em causa as competências profissionais de Venezi, filha de um antigo militante do partido neofascista Forza Nuova. A título de exemplo, a actual directora musical da La Fenice não granjeou, no início do ano passado, a simpatia ou o respeito da orquestra sinfónica do Teatro Politeama Garibaldi, em Palermo. “Após os ensaios, concordámos não olhar para ela e coordenarmo-nos entre nós. Os seus gestos não eram condizentes com a performance musical”, afirmaria ao La Repubblica o veterano flautista Claudio Sardisco.

“É intolerável Venezi continuar a fazer-se passar por alguém com qualidades que claramente não tem. (…) Quase todos a consideram incompetente no mundo da música, mas ninguém quer dizê-lo publicamente, por medo de repercussões”, criticaria, por seu turno, o compositor Franco Piersanti, que em 2022 contestou a escolha de Venezi para reger o concerto de natal da Orquestra Haydn de Bolzano e Trento​.

Venezi, aponta o El País, é conselheira do Ministério da Cultura italiano desde 2022. A controvérsia que presentemente protagoniza insere-se num “contexto mais vasto de acusações contra o Governo italiano de direita por tentar colonizar as instituições culturais”, nomeando responsáveis “mais pela sua ideologia do que pelos seus méritos”, enquadra o diário espanhol.

“O seu currículo não tem a mínima comparação com os dos grandes maestros que já assumiram a direcção musical deste teatro no passado”, escreviam, na semana passada, os músicos da orquestra, sublinhando ainda que Venezi foi nomeada sem nunca antes ter assumido a regência de uma ópera ou de um concerto na La Fenice.

“Pedimos apenas uma direcção musical que não seja imposta por questões políticas, e que esteja ao nível da La Fenice”, afirma o violoncelista Marco Trentin, citado este sábado pelo La Repubblica. “Esperamos que todos compreendam a dimensão global daquilo que está em jogo em Veneza.”