Sabe aquele ditado do pior cego ser aquele que não quer ver? “Perrengue Fashion” veste a carapuça de modo impecável. A nova comédia protagonizada por Ingrid Guimarães traz toda aquela good vibes do discurso bonito de defesa da natureza, apego à terra e às raízes para deixar de lado o supérfluo do consumismo. Enquanto faz a skin consciente, o filme reproduz de maneira automática e até sem perceber (ou seria se importar?) todos os clichês possíveis históricos sobre a região amazônica.  

O ponto de partida de “Perrengue Fashion” já deixa claro o desastre que se anuncia: influencer de moda doida pela fama, Paula Pratta (Guimarães) precisa encontrar o filho Cadu (Filipe Bragança) para conseguir realizar uma campanha publicitária para a Gucci para o Dia das Mães. Com o rapaz incomunicável, resta à protagonista e seu fiel escudeiro Taylor (Rafa Chalub, uma tentativa sem sucesso de Paulo Gustavo reborn) localizarem, via satélite, onde está a mala dele. Adivinha onde está? Exatamente: na Amazônia.  

Para o quarteto de roteiristas de “Perrengue Fashion”, a Amazônia é aquele espaço ao Norte do Brasil onde o mapa no celular de Taylor mostra tudo verde com umas linhas azuis cortando o espaço. Até aparece de relance um pequeno ponto com um nome chamado Manaus, mas, pouco importa: é Amazônia e ponto final. 

“É no meio do mato”, se desespera um de nossos heróis. Logo, a única forma de chegar na região é pegar um avião teco-teco, afinal, você acha mesmo que existe aeroporto e voo comercial no fim do mundo? O descaso fica completo quando ora o longa insinua estar no Amazonas com a comunidade do Catalão de cenário, na região metropolitana de Manaus (local onde o filme foi feito e até aparece ao fundo em certa cena), ora mete de trilha um carimbó de Dona Onete, símbolo da música paraense, e faz referências a comidas do Estado. Faz tanto sentido quanto filmar a avenida Faria Lima e colocar de trilha “Wave”, de Tom Jobim. 

“Perrengue Fashion” não se satisfaz apenas em ignorar territórios e as diferentes Amazônias: tal qual os portugueses quando chegaram na região séculos atrás, cabe aos personagens vindos de São Paulo, Rio de Janeiro e até da Europa salvarem os pobres coitados que aqui vivem. Cadu integra uma comunidade perfeita para encaixar no meme de Rita Lee com sua plantaçãozinha orgânica, todo mundo fazendo yoga, Pilates e afins, sempre com um discurso a tiracolo ligado à preservação ambiental e contra o consumismo predatório. São eles, inclusive, que alimentam os sonhos, vislumbram projetos sustentáveis para todos ali.  

O exotismo também faz parte do cardápio de “Perrengue Fashion”: a convivência com um macaquinho rende uma cena que era para ser hilária, mas, já foi feita antes em qualquer comédia do gênero ambientada na Amazônia, África, Sudeste Asiático, estes locais terrivelmente selvagens. A diretora Flávia Lacerda deixa bem claro como não viu o trabalho de Luca Guadagnino em “Queer” ao retratar o ritual da ayahuasca da forma mais caricata possível com direito a instrumentistas indígenas como se fosse o sexteto do Jô Soares. E por fim, a cereja do bolo deste ideário da Amazônia como paraíso na Terra se completa com a liberdade sexual no melhor estilo hippie – mal sabem o conservadorismo bolsonarista das bandas locais… 

Aos nortistas, moradores da região, cabem ser figurantes. Quase nenhum personagem amazônida possui fala. Somente Rosa Malagueta consegue um mísero espaço, fazendo uma cozinheira da região. A função dela, aliás, representa muito bem a essência de “Perrengue Fashion”: primeiro como uma figura descritiva tal qual guia turístico ao ficar citando as comidas locais exóticas para Paula experimentar, depois para ser salva por Cadu, o nosso salvador branco, após a mãe fazer uma live desastrada atraindo um bando de gringos sem noção. O descaso chega a ser tão escancarado que uma das primeiras falas de Rosa acaba sendo encoberta logo no início por conta da trilha, ficando claro que não interessa nada do que diz. 

Para além deste discurso mofado da Amazônia, o desejo de passar uma mensagem bonita goela abaixo faz com que “Perrengue Fashion” consiga gerar antipatia à mensagem. Impossível não ficar com ranço de Cadu, um ecochato, sempre querendo ensinar os outros e, apesar de todo o discurso de pensar no coletivo, se mostra incapaz de compreender a importância do pedido da mãe. Este modo palestrinha está na essência de cada um dos 94 minutos, tirando a paciência de qualquer sujeito. 

A cena final com Paula se reconectando à essência da natureza com um banho de rio no pôr do sol simboliza bem a visão da Amazônia de uma parte significativa do Sul/Sudeste brasileiro endossada por “Perrengue Fashion”: apenas um cenário deslumbrante para estar em contato com a natureza e render imagens bonitas. O resto? Pouco importa. 

  • Editor-chefe do Cine Set. Exerce o cargo de diretor de programas na TV Ufam. Formado em jornalismo pela Universidade Federal do Amazonas com curso de pós-graduação na Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo.


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