Maria Ribeiro se lembra com clareza de ser vizinha de porta de Otto Lara Resende (1922-1992) na infância. Eles moravam na Rua Joaquim Campos Porto, no bairro carioca Jardim Botânico.
“Inclusive, quando o ‘Jornal do Brasil’ noticiou que o Otto tinha sido eleito para a Academia Brasileira de Letras, deram uma foto em que ele está com meu tio. Os dois voltavam de uma partida de tênis”, conta a atriz, documentarista e escritora.
Ter Otto Lara Resende morando à porta ao lado era, no mínimo, inusitado. Com menos de 10 anos, Maria já vinha lendo crônicas do mineiro na escola, por meio da coleção “Para gostar de ler”.
“Então, era extraordinário poder estar ao lado de um autor que todos na escola tinham lido. Era como se eu o conhecesse de outra forma”, lembra ela.
O autor de “As pompas do mundo” foi, provavelmente, a primeira referência para Maria no gênero que ela vem cultivando há 10 anos, publicando ininterruptamente em jornais e sites de notícias. Parte dessa produção, escrita a partir de 2018, está em “Não sei se é bom, mas é teu” (Record), que ela lança agora pela editora Record.
Lançamento em BH
A autora estará na capital mineira na próxima quarta-feira (15/10) para lançar o livro no Sempre um Papo. A conversa com Maria Ribeiro será no teatro da Biblioteca Pública de Minas Gerais (Praça da Liberdade, 21, Funcionários), às 19h30, com entrada franca.
O título, sugestivo, vem de uma fala escrita por Domingos Oliveira para o filme “Todas as mulheres do mundo” (1966) e dita por Paulo José, protagonista do longa. É uma frase que dialoga com o Brasil dos últimos sete anos: a ascensão da extrema direita com discursos de ódio, o assassinato de uma vereadora que lutava contra as milícias no Rio de Janeiro e uma pandemia que se estendeu por quase três anos, levando todos ao confinamento. “Não sei se é bom, mas é teu”, portanto, é um retrato do Brasil recente.
Em aproximadamente 70 textos, distribuídos ao longo de 176 páginas, Maria escreve sobre maternidade, feminismo, envelhecimento, memórias afetivas, política, racismo, futebol, relacionamentos, dramas existenciais e cultura pop – Anitta e Caetano Veloso, aliás, assinam o prefácio e o posfácio do livro, respectivamente. Todo esse material já foi publicado na Veja Rio, Gama e UOL.
Linguagem acessível
“Não foi fácil revisitar esses sete anos”, comenta a autora. “Foram muitos acontecimentos traumáticos e que me impactaram muito, como as mortes da Marielle, Fernanda Young, Rita Lee e Paulo Gustavo”, lembra.
Em linguagem acessível e coloquial – Maria, por exemplo, sempre se refere às mulheres como “minas” –, as crônicas de “Não sei se é bom, mas é teu” partem quase sempre de detalhes muito singelos do cotidiano para propor reflexões mais amplas.
É o caso de “Voltar ao início”, em que a simples mensagem “Deseja recomeçar de onde parou?” de uma plataforma de streaming, referindo-se à continuação de um filme pausado, dá a Maria impulso para repensar a própria vida e questionar se seria melhor continuar de onde parou ou recomeçar do zero.
Há também tiradas bem-humoradas, como em “A mulher do Capitão Nascimento”. Referindo-se ao trabalho que fez em “Tropa de elite” (2007), Maria conta que, repetidamente, é abordada na rua por homens perguntando se foi ela quem interpretou a esposa do Capitão Nascimento (papel de Wagner Moura).
Casal de “Tropa de elite”
Diante da resposta afirmativa, escuta, em tom de gracejo: “Quem manda nessa casa aqui sou eu!” ou “Não abre a boca para falar do meu batalhão!”, falas marcantes do personagem de Wagner Moura. Maria não se incomoda, mas adverte: “Não sei se os homens que me abordam na rua, envaidecidos, reproduzindo tal ‘bronca’, lembram-se do desfecho do casal. Ela vai embora e, no filme seguinte, aparece casada com outro”.
Ela também aborda questões mais íntimas, ainda tratadas como tabu. Em “Menopausa mesmo”, revela sua experiência com essa fase da vida; em “Eu sou escritora”, diz que assumiu a profissão que desejava desde a infância – durante um assalto, pediu que os bandidos não levassem o computador, porque era nele que estavam seus textos. Já em “As cinzas de meu pai” volta o pensamento para o pai morto há alguns anos e a mãe que corria risco de vida no hospital.
Por fim, há temas espinhosos, embora necessários. É o caso do racismo sofrido por Vini Jr. na Espanha, em 2023 por parte da torcida do Atlético de Madri. Ou nos textos em que se posiciona contra o negacionismo do então presidente Jair Bolsonaro durante a pandemia do novo coronavírus, que levou à morte mais de 700 mil brasileiros.
“Desenvolver o olhar para o cotidiano é fundamental para o cronista”, ela diz. “Contudo, mais importante ainda é ter coragem para se abrir. Eu, assim como muitas outras brasileiras, cresci em um ambiente onde as mulheres eram muito oprimidas, havia uma série de limitações. Sempre fui observando e elaborando isso, a ponto de conseguir me abrir para falar tudo”, diz.