A escritora australiana McKenzie Wark expõe no livro Raving, recém-editado em Portugal, um tipo de tempo paralelo, que acontece “numa boa rave“, uma “prática colaborativa que torna esta vida suportável”, explicou em entrevista à agência Lusa.
“Acho que sabemos, queiramos ou não admitir, que há muitos bons futuros. A nossa tarefa é evitar os piores. Mas isso é difícil, emocionalmente. Passamos muito tempo em negação. É adquirir, pelo menos, a força emocional para confrontar isso. Acho que uma boa rave produz uma experiência do que eu chamo um tipo de tempo paralelo, onde há mais tempo. Puxa-nos para o lado”, notou.
Raving, lançado este mês pela Orfeu Negro com tradução de Nuno Quintas e um “desfácio” da autoria de Odete, foi lançado originalmente em 2023 e é o segundo livro da autora editado em Portugal, depois de “Manifesto Hacker”, pela DeStrauss.
A mais recente obra foi apresentada em Lisboa, na Casa Capitão, e no Porto, na Livraria aberta, e segue-se a “Reverse Cowgirl” e “Philosophy for Spiders”, livros que sucedem à transição de género e a uma viragem para um registo autoficcional e na primeira pessoa na escrita.
Foi depois da transição que encontrou uma “nova comunidade” nas raves de Brooklyn, em Nova Iorque, após ter perdido “muitos amigos”.
“Após a transição, senti-me muito melhor sobre muitas coisas na vida, mas havia uma espécie de disforia de género de baixo nível que nada diminuía. (…) Muita gente ‘cis’ desapareceu da minha vida”, admitiu.
Encontrar as raves foi “um momento de descoberta”.
“Sempre gostei de dançar. Esta comunidade particular mudou a minha vida. Como escritores, somos um pouco parasíticos quanto ao mundo, mas eu queria dar algo de volta. Por isso, o livro é também uma carta de amor à comunidade raver e queer de Brooklyn, e também é para todo o mundo”, afirmou.
A partir desta “inovação temporal”, o tempo-k, McKenzie Wark não pretende “ser aceleracionista”, mas atualizar termos em torno deste fenómeno cultural, olhando filosoficamente para o tempo de uma perspetiva diferente “da alavanca de Walter Benjamin” ou de teóricos sobre tempo queer.
“Um tempo trans, sem futuro, mas que faz do presente um presente. Os portões do paraíso estão trancados. Tornaram-se propriedade privada. Mas podemos dar a volta por trás e saltar por cima da cerca”, escreve a autora em Raving.
No glossário de conceitos do livro, pode ler-se que tempo-k é “tempo dissociativo, tempo de ketamina”, associado ao “tempo de encadeamento lateral”, definido como “o tempo de dissociação coletiva e histórico-mundial”.
Toda esta reflexão surge no contexto de uma “situação construída”, uma festa com música a elevado ritmo de batidas por minuto, numa prática associada também a desejos e necessidades, e liga-se à forma como mostramos empatia e solidariedade pelo outro ou à “colonização” dos espaços.
“A gentrificação é um problema em Nova Iorque, todos estamos implicados nisso. A vida noturna é uma das fases de desenvolvimento dos bairros. Somos todos internos à fase de comodificação em que estamos. (…) Como se vira dessa existência comodificada para os nossos verdadeiros interesses e desejos? Isso é o que nos interessa. Uma boa rave ilegal faz isso”, associa McKenzie Wark.
Apesar de ajudar a “reorganizar os sentidos”, a usar o movimento para encontrar outras formas de intimidade e relacionar corpos entre si, a rave “não é uma utopia”.
“Não se ultrapassa magicamente a homofobia porque se está ali. Mas há coisas que se podem aprender. Não se perdem fronteiras, muda-se o que são as nossas fronteiras em relação ao Outro. São espaços onde posso só ser uma pessoa. Enquanto mulher trans, o problema é que ou sou lixo ou divina. Às vezes, é bom ser divina, mas é cansativo. Podemos ser só normais juntos?”, questionou.
Neste “universo social alternativo”, “toda a gente traz a sua agressão e o seu antagonismo consigo”, e quanto às pessoas trans, disse, com uma “taxa fenomenalmente alta de suicídio”, pode criar-se um espaço em que “tudo começa com mantermo-nos vivos, uns aos outros”.
“Muita gente está a lutar pela vida. Como se cria um espaço onde podemos ser livres? Pessoas trans não esperam viver muito tempo, e não vivem como se pudessem. Mas a vida é longa. Como é que melhoramos isto? Para algumas pessoas, a noite é um sítio para chegar a essa liberdade”, refletiu.
Nascida em 1961, na Austrália, McKenzie Wark trabalha atualmente como professora universitária, na área de Estudos Culturais e Media, e é autora de obras associadas à Internacional Situacionista.
“Manifesto Hacker”, “Gamer Theory” e “Capital is Dead” são livros relacionados com cultura digital e o peso das tecnologias de informação na vida de todos, tendo publicado “Love and Money, Sex and Death” como sucessor de Raving.