O líder norte-americano considera que “a guerra em Gaza acabou”, quando na realidade o cessar-fogo entre Hamas e Israel já está em risco de colapsar. Na sexta-feira, recebe o Presidente da Ucrânia na Casa Branca, mas o encontro promete abrir uma nova frente de batalha mais do que enterrar o machado da guerra. Para os mais atentos, o seu derradeiro objetivo é só um: “poder focar-se no essencial”

Donald Trump tem mais com que se preocupar e a prová-lo está uma semana frenética que ainda só vai a meio. Tendo aberto uma nova frente de guerra comercial com a China – anunciando tarifas de 100% sobre as exportações chinesas para os EUA, que já mereceram uma promessa de retaliação em igual medida por parte de Pequim – o presidente norte-americano quer, à força, enterrar o machado da guerra nos dois grandes conflitos que pairam sobre a sua administração. E fá-lo à custa da verdade, se necessário for, tendo já proclamado o “fim da guerra em Gaza”, antes de anunciar uma reunião com o presidente da Ucrânia em Washington DC na próxima sexta-feira.

“Trump é um líder que precisa de mediatismo e, quando toma uma decisão, anuncia-a como decisão final sem se preocupar com as consequências dessa decisão”, aponta à CNN Portugal José Filipe Pinto, especialista em Relações Internacionais. “Para ele, a guerra em Gaza está terminada, mesmo que efetivamente não tenha terminado – e, da mesma maneira, vai tentar concentrar-se na questão ucraniana e russa com uma atitude muito semelhante”, antecipa o também professor catedrático da Universidade Lusófona.

Um dia depois de Trump ter proclamado a inauguração de uma “nova era dourada do Médio Oriente”, ontem o cessar-fogo entre Israel e o Hamas já ameaçava fracassar. Na primeira fase do acordo de paz proposto pela administração norte-americana e debatido na cimeira da paz no Egito – da qual estiveram ausentes representantes de Israel, do Hamas e do Irão – o grupo palestiniano comprometia-se a libertar todos os reféns vivos e mortos. Mas libertados os vivos, a segunda parte está a provar-se mais difícil – e isso pode ser aproveitado por Israel para pôr fim a um acordo que está longe de unir todos os israelitas ainda antes de ser totalmente negociado.

“Houve quem dissesse que a segunda fase já começou, mas isso não é correto, continuamos na primeira e ainda hoje [ontem] o Comité Internacional da Cruz Vermelha disse que é um desafio enorme localizar os corpos dos reféns que morreram, porque estamos a falar de um conflito com dois anos – se não há condições do ponto de vista humanitário minimamente dignas no que diz respeito ao abastecimento dos vivos, não podemos esperar tratamento melhor em relação aos mortos”, ressalta José Filipe Pinto.

O “primeiro problema” com o acordo de cessar-fogo em Gaza prende-se com a entrega dos reféns mortos, destaca José Filipe Pinto, “até porque durante muito tempo alguns dos reféns estiveram na posse de outros grupos, designadamente a jihad islâmica palestiniana [na foto]”, com o qual o Hamas está agora envolvido em confrontos no terreno (Abdel Kareem Hana/AP)

Face a esta dificuldade, Israel já teceu acusações ao Hamas de que não está a respeitar o acordo de cessar-fogo, usando a dificuldade logística como “um pretexto para dizer que não há cumprimento da parte do Hamas”. É o que o especialista destaca como “o primeiro problema” do atual acordo, numa altura em que Israel já levou a cabo novos ataques à Faixa de Gaza que vitimaram pelo menos sete palestinianos, e ao qual acresce um segundo problema, patente no facto de o enclave estar já mergulhado em combates mano a mano entre o Hamas e outros grupos armados.

“Esse é o outro elemento fundamental que nos mostra os riscos evidentes de este acordo colapsar”, adianta José Filipe Pinto. Quando Trump discursou no Knesset na segunda-feira, anunciou que os EUA autorizaram o Hamas a “rearmar-se” para poder policiar a Faixa de Gaza até uma nova força internacional ser destacada para o território – mas, para o analista, “não entendemos o que Trump disse sobre quem garantirá a segurança em Gaza”.

“Trump deu a ideia de que seria o Hamas, mas o que o Hamas já está a fazer é a ajustar contas com grupos rivais e com membros do próprio grupo acusados de colaborar com Israel. No fundo, já está em curso o que se chama não a noite mas o dia das facas longas – e juntando estes dois elementos, fica evidente que o acordo dificilmente vai subsistir por muito tempo.”

Do dia das facas longas a uma nova frente de batalha

Numa lógica de paz à força sem olhar às consequências, Trump esteve em Jerusalém e em Sharm el-Sheikh sem avançar detalhes sobre o futuro do acordo de paz. Em vez disso, ainda no Egito mas já a bordo do seu Air Force One, pronto para regressar aos EUA, o líder norte-americano anunciou que vai receber Volodymyr Zelensky na Casa Branca na sexta-feira, assumindo que esse encontro poderá resultar na entrega de mísseis Tomahawk a Kiev – ainda que indiretamente.

“Posso dizer-lhes [aos russos] que, se a guerra não for resolvida, é bem possível que o façamos, talvez não, mas é possível que o façamos”, disse Trump quando questionado pelos jornalistas sobre o assunto. “Será que eles [russos] querem mísseis Tomahawk a voar na sua direção? Acho que não.”

A reunião do final da semana será a quinta entre Trump e Zelensky desde que o empresário tornado presidente voltou à Casa Branca em janeiro e surge após dois telefonemas entre os líderes nos últimos dias para debater as defesas aéreas e as capacidades de longo alcance da Ucrânia, no contexto de um renovado ataque russo às infraestruturas energéticas ucranianas.

As chamadas, reconheceu Zelensky esta semana, “não foram suficientes” para discutir os tópicos mais urgentes, pelo que se impõe o encontro ao vivo – e são os Tomahawk, mísseis-cruzeiro de longo alcance com capacidade para atingir alvos até 2.500 quilómetros de distância, que prometem dominar a reunião em DC, agora que se afiguram como um “tema de extrema preocupação” para Moscovo, como adiantou o porta-voz do Kremlin – “Este é realmente um momento muito dramático”, reconheceu Dmitry Peskov, “tendo em conta que as tensões estão a aumentar de todos os lados”.

“Tal como Trump não quer tropas dos EUA em Gaza, também não quer envolver-se diretamente na Ucrânia e, portanto, o caminho que irá seguir será por via indireta”, assume José Filipe Pinto sobre o iminente encontro.

“No que toca à Ucrânia, primeiro tentou a paz, a seguir afastou-se e percebemos que se aproximou de Putin, a seguir houve uma aproximação, ainda que indireta, a Zelensky, através da NATO e da UE, e agora Trump regressa numa perspetiva semelhante à que teve no Médio Oriente, que é assumir que os EUA poderão fornecer material indiretamente, neste caso os Tomahawk – porque nada o impede de os fornecer aos membros da NATO, para serem depois eles a fornecê-los à Ucrânia.”

O encontro de Trump com Zelensky na sexta-feira poderá conduzir a um desbloqueio dos mísseis Tomahawk “por via indireta, através da coligação dos países dispostos”, mas dificilmente permitirá ao Presidente norte-americano reclamar mais um acordo de paz, ainda que esteja a conseguir isolar Putin no outro foco quente da geopolítica (fotos AP)

O eixo em vista

São imensas as dificuldades antecipadas nesta busca pela resolução de uma guerra que lavra há mais de três anos na Ucrânia, sobretudo considerando que os três maiores países da UE – França, Alemanha e Espanha – estão a braços com os seus próprios problemas internos, e numa altura em que o bloco europeu continua a debater se usa ou não os ativos russos congelados para financiar Kiev, no que seria lido como uma entrada na guerra com Moscovo.

“Tanto no caso de Gaza como no da Ucrânia, Trump não quer tropas americanas no terreno, mas não se importa de disponibilizar elementos militares para o terreno, como informações e tecnologias”, considera José Filipe Pinto. “Em Gaza, quer aparecer como promotor da paz, mas não com tropas no terreno como os países árabes pretendiam. E na Ucrânia é a mesma coisa, nesse caso por via da chamada coligação dos dispostos, que inclui o Reino Unido.” 

Ainda na segunda-feira, no seu discurso ao Parlamento israelita, Trump assumiu que, para resolver um conflito, é preciso resolver outras coisas, dizendo que “seria ótimo se pudéssemos ter um acordo de paz com o Irão”, mas que para o conseguir, “em primeiro lugar temos de resolver a Rússia”. Reagindo às declarações, Peskov disse que Moscovo “certamente saúda tais intenções e a confirmação da vontade política de fazer todos os possíveis para promover a busca por soluções pacíficas”.

Tudo isto não pode ser dissociado dos grandes objetivos estratégicos da equipa de negociadores dirigida por Trump, nomeadamente o de isolar os maiores rivais dos EUA e reduzir a sua influência geopolítica em diferentes regiões, incluindo no Médio Oriente. Nesse contexto, vale a pena notar que a Rússia não foi convidada a participar na cimeira de paz no Egito que contou com a presença dos líderes de pelo menos 27 países, isto já depois de o Kremlin ter sido forçado a cancelar uma cimeira com a Liga Árabe para o final desta semana porque não teria garantido um quorum mínimo

“A Rússia não era marginalizada diplomaticamente no Médio Oriente desta forma desde que interveio na Síria em 2015”, ressaltava ontem à RFE/RL Hanna Notte, diretora para a Eurásia do Centro James Martin para Estudos de Não-Proliferação. E encostar a Rússia às boxes é também isolar a China, o maior dos rivais dos EUA, adianta José Filipe Pinto.

“O que Trump vai fazer é criar um problema endossado aos europeus, apoiando a Ucrânia indiretamente para não abrir uma nova frente de batalha dos EUA com a Rússia – e tudo para poder focar-se no essencial, que é a guerra comercial com a China, o país que, neste momento, já domina o eixo economicista mundial.”