Nasceu às mãos da “Maria Serranha” que “pariu mais de metade do pessoal” do Entroncamento “ali” na rua 5 de Outubro, a meia dúzia de metros do cruzamento com a “abandonada” e “calcetada” rua Luís Falcão de Sommer, “logo a seguir ao Vila Franca [um restaurante] onde estava a máquina de vender bebidas”. Fernando Barbosa, 73 anos, “parido e criado nesta terra” e que desde o 25 de Abril participa “nas mesas em todas nas eleições”, foi a votos, “desta vez”, como número dois na lista do PSD/CDS que “ganhou ao Chega e ao PS” a Junta de Freguesia São João Baptista, a “freguesia daqui de baixo”. A outra, “a de lá cima”, a junta de freguesia de Nossa Senhora de Fátima foi conquistada pelo Chega, tal como a Câmara. Foi ali que André Ventura acabou na noite eleitoral de domingo por ser a autarquica que o Chega venceu mais perto de Lisboa (as outras foram Albufeira, no Algarve, e São Vicente, na Madeira)
Durante três décadas, o antigo técnico de manutenção industrial, foi comandante dos Bombeiros Voluntários do Entroncamento e, diz, orgulhoso que “levou os bombeiros ao mais alto nível técnico”. Saiu há 14 anos e não esconde a mágoa do tempo em que eram “chamados para tudo e mais alguma coisa”. “Deixei lá 156 homens, seis profissionais, agora têm 36, todos pagos, e a maior parte deles nem sabe pegar numa agulheta. Não há motivação. Desde que me vim embora já tiveram dez comandantes”. A frase é dita pausadamente e acompanhada de um encolher de ombros.
José Fonseca Fernandes
No dia a seguir às eleições, a conversa “da manhã”, defronte do Largo José Duarte Coelho, lugar do Centro Cultural e “da câmara que fica lá ao fundo”, é sobre os “12 anos de governação socialista que foi uma degradação total”. As explicações de Fernando Barbosa (PSD/CDS) para avitória “histórica” do Chega, que quebrou o “longo” ciclo socialista e “ganhou a câmara municipal”, é semelhante às leituras do candidato do PS, Mário Balsa, que “já sentia que ia perder” e de Nelson Cunha (CH), o novo presidente da autarquia. Mas não apenas. Nas ruas, os de “cá de baixo” e os “lá de cima”, respondem resignados, e alguns “até contentes”, que “já se sabia que isto acontecer”.
“Há uma falta de segurança, isto é um caos, não temos forças de segurança, a partir das sete da tarde já não se vê ninguém na rua porque as pessoas têm medo de vir para a rua. Os daqui estão a abandonar a cidade e a ir para os concelhos vizinhos”, lamenta o antigo chefe dos bombeiros.
Geraldo, ao lado, que diz “ter pouco jeito para dar entrevistas”, vai acenado com a cabeça, e mais ainda quando Fernando Barbosa fala dos “poderes que foram retirados aos polícias e das condições miseráveis que lhes dão” e da “gente esquisita” que desde “há três anos veio para aqui viver”. Numa palavra, a explicação mais simples: “Descontentamento.”
“Esta rua aqui”, acrescenta Geraldo, “era só gente para baixo e para cima, iam a pé até ao Bonito [Jardim]”. E agora? “Agora é um deserto, só vem p’ra aí gente dessa. Olhe, debaixo da ponte [o túnel pedonal que fica a menos de 100 metros e passa “por debaixo da linha do comboio”] é só assaltos de noite”.
Subindo a 5 de Outubro, atravessando o “túnel” e passando o Jardim da Locomotiva na direção da Igreja de Nossa Senhora de Fátima e da “junta de Freguesia que fica numa rua sem saída”, num café de esquina, e já nos “lá de cima”, nada muda nas explicações. Há uma diferença: a adjetivação. “A cidade está podre, a Cova da Moura bateu-se toda aqui no Entroncamento. Eles com vinte paus [o passe mensal de 20 euros], eles vão e regressam, só não há é aqui barracas”, desabafa Estevão que não votou, mas está “satisfeito com o resultado”.
José Fonseca Fernandes
Na mesa do lado esquerdo, ao fundo, Inocência Cortes que viveu 36 anos em Lisboa e está no Entroncamento “há 20” diz, num tom agitado, que “isto já é uma colónia africana, já não é Portugal”. E o resultado? “Gostei imenso, imenso mesmo. Até lhe digo uma coisa: já disse ao senhor presidente [o eleito Nelson Cunha] que o André Ventura era meu vizinho em Mem Martins. Os pais eram pobres, ele estudou com bolsa estudo…. vivia com os avós.”
No lado direito, noutra mesa, estão pai e filho, que olham atentos a conversa. “Tenho 61 anos e nunca votei. O meu partido são estes meus braços [e ergue os braços], ninguém dá nada a ninguém”, diz Domingos Amoroso “nascido e criado” no Entroncamento. Ao lado, o pai, o “outro Amoroso”, também não votou: “Estou velho das pernas.”
“Muita conversa, muita conversa”
Junto à porta do café, nas mesas do lado direito, Joaquim Pires, 71 anos, “60 deles aqui”, pede a carteira profissional, quer provas de que ali estão mesmo jornalistas, e só depois responde. “O resultado era expectável, as pessoas estão descontentes com os ciganos [o bairro da comunidade cigana fica ali perto] e com os negros. Ninguém ficou surpreendido aqui. Toda a vida tem havido muito cigano no Entroncamento. Os negros, bom, veio uma invasão deles há dois anos para cá. Os brancos, esses, à noite, estão dentro de casa, nem aparecem”.
“Mas há aí muitos de Angola com dinheiro. Há indivíduos aí a investir forte. Agora o que é preciso é haver ordem. Não pode ser assim: cada vez pior, pior, pior”, interrompe Alípio Simões, “natural do distrito de Coimbra” – como faz questão de sublinhar –, mas que vive “há 50 anos nesta terra”. O “antigo combatente”, de 83 anos, lamenta que Portugal seja um “país atrofiado que não sai disto”: “Podíamos ser uma Holanda, haja alguém que dê uma sapatada nisto”.
A “sapatada”, acrescenta Joaquim Pires, “é ver o trabalho destes do Chega. Muita conversa, muita conversa, mas agora é que se vai ver o que é que eles fazem, o que estes milagrosos vão fazer”.
Perto da Igreja da Nossa Senhora da Fátima, um grupo de mulheres, todas formandas no Instituto do Emprego e Formação Profissional porque perderam “o trabalho” quando “as empresas foram à falência”, já “sabiam no que isto ia dar”. “Todas ouvíamos que era o Chega que ia ganhar.” Porquê? Todas riem. Um riso nervoso. O incómodo é visível. Finalmente uma tímida frase: “A imigração.” Depois a experiência de vida. “Eu tinha médico de família. Já não tenho. Fiquei sem médico de família e já estou no Entroncamento há 57 anos. Os que estão a chegar já têm direito a tudo. Temos o exemplo disso, das escolas, eles chegam aqui e têm logo lugar”. A frase é da Isabel que perdeu um emprego de 34 anos, só Isabel que mais que isso “pode ser mau para mim”.
José Fonseca Fernandes
E é ali, na zona dos “de cima”, um Entroncamento, como dizem, “cheio de gente que veio de Angola e Moçambique” e de “ciganos” que o Chega ganhou. Porquê? “Aqui há muita gente idosa e o idoso vai muito por aquilo que o André Ventura diz”. É a crença de que “se o Chega diz que os vai mandar embora, é porque vai mesmo”.
Nenhuma sabe dizer se há mais ou menos crime associado à “invasão” de que se queixam. Só se lembram de “um tiro e uma facada lá em baixo ao pé da estação, dos muitos assaltos. Na sexta-feira, a noite toda, foram para aí uns 12 sítios. São eles? Ninguém sabe. Estas percepções e argumentos, ainda que por outras palavras, são partilhadas pelos que foram candidatos pelo PSD/CDS, PS e Chega.
O PS “perdeu o foco”
Mário Balsa, do PS, [é Gonçalves, mas ninguém o conhece por esse apelido], o professor e socialista que perdeu as eleições para Nelson Cunha, candidato do Chega, admite sem reservas que a “frustração das pessoas existe” e que “se sente na rua”.
“Um fluxo migratório muito forte; uma significativa mudança, muito forte, da comunidade tradicional do concelho; houve um aumento muito significativo de alunos, as escolas estão sobrelotadas, duplicaram praticamente o número de alunos no espaço de três anos; mudou o ir ao centro de saúde, é difícil ter médico de família, é difícil ter consultas; e também temos muita gente, mesmo muita gente, que vive cá, mas não tem morada cá; e confirma-se, sim, que muitos pais estão a levar os filhos para escolas e creches fora do Entroncamento”, confirma o candidato derrotado.
José Fonseca Fernandes
O candidato do PS revela ainda que os custos com a habitação dispararam com a “questão” dos imigrantes que “fugiram na área metropolitana de Lisboa” porque “aqui a habitação era barata”. E “isto”, aconteceu “tudo nos últimos dois, três anos”. “Não há barracas”, mas os “preços das casas aumentaram muito”. Outro dado: a “desorganização urbanística” na zona dos de “lá de cima”, que “deveria ter tido regras mais apertadas”, é explicada pelo “crescimento explosivo” de uma cidade que “nunca perdeu população, ao contrário do restante país”.
Uma justificação “nacional”, diz, também concorre para este cenário local porque o PS “perdeu o foco naquilo que é o nosso eleitorado normal e tradicional. O PS, a certa altura, derivou para a esquerda e menos para o centro, que é o seu posicionamento natural”. E, assim, também se explica o “tombo eleitoral grande”.
Nelson Cunha, eleito presidente da câmara pelo Chega, acrescenta outros “dados” que ajudam a tipificar o retrato do concelho: 2,5% da população (dados de 2022) é beneficiária do RSI, os estrangeiros representavam, em 2021, 9,4% da população [média nacional, diz, era de 5,5%]. O que mudou? Todos estes dados “aumentaram” nos últimos anos.
Mário Balsa, que viu o PS passar de primeira para terceira força política, elogia os primeiros oito anos da governação socialista, mas admite a “incapacidade” dos últimos “três anos completamente atípicos” de “uma cidade que já estava adormecida” desde os “três mandatos do PSD” e os “dois do PS”. Tradução? Há cerca de 25 anos. Justificação para os últimos quatro anos? “Escolas, centros de saúde, habitação” não se constroem em “tão pouco tempo”.
Manter uma governação PS, reconhece, seria “contrariar uma corrente muito forte, seria difícil remar contra ela”. O desaire explica-se pelo “descontentamento muito forte” da população. E também pela “subida dos níveis de criminalidade” que estão identificados e que não estão ligados “à imigração”.
“Furtos, violência doméstica significativa, mas pelo que a PSP me transmitiu, os criminosos estão identificados. 900 crimes até agora. O mesmo que no ano inteiro de 2024”.
Vencedor quer polícia municipal “armada”
Nelson Cunha (CH), que vê nas suas “raízes” nas zonas de maior “debilidade” e nos pais que “tinham banca na Praça” e “pastelarias” a razão da sua eleição – apesar dos seus opositores dizerem o contrário -, diz que o maior problema do concelho é “claramente a falta de segurança”. O seu plano passa por uma polícia municipal “armada” – medida que diz ser “robusta” e que contrarie, por exemplo, o furto por esticão que é o “quarto mais alto no país” [Lisboa, Porto e Albufeira são os primeiros concelhos] – que trave “o recorde de criminalidade do ano passado: cerca de mil crimes reportados até setembro”.
Os “números alarmantes”, ou a “subida” nas palavras do candidato do PS, explica-se pelo “aumento exponencial de população” [quer PS, quer Chega admitem que haja hoje cerca de 30 mil e não 22 mil habitantes] e pela “grande taxa de subsidiodependência” que “tem vindo a aumentar”. “Quando se rouba para comer é preocupante. Muitos dos roubos, por exemplo, nas últimas quatro semanas, são roubos de comida. Não são roubos para ganhar algum dinheiro. E isto é que é preocupante”, alerta o antigo escuteiro eleito presidente.
A cidade que não foi “reiventada”, e que “perdeu operários da CP e a forte componente militar das unidades militares próximas”, como acrescenta Mário Balsa (PS), elegeu Nelson Cunha (CH) para liderar a autarquia nos próximos quatro anos. Chega conquistou três mandatos (3.649 votos), a coligação PSD-CDS, dois (2.986 votos) e o PS outros dois (2.164 votos). Dos cerca de 22 mil habitantes, só pouco mais de 16 mil estão inscritos como eleitores. E destes só 9.773 votaram.