As microempresas poderão, se a reforma laboral do Governo avançar, garantir apenas 20 horas de formação contínua aos seus trabalhadores por ano. Atualmente todas as empresas, independentemente da dimensão, têm de garantir 40 horas anuais de formação.

Na proposta de alterações laborais entregue aos parceiros sociais, o Governo propõe que “em cada ano o número de horas de formação contínua a que o trabalhador tem direito é, respetivamente, vinte horas no caso de microempresas, quarenta horas nas restantes, ou sendo contratado a termo por período igual ou superior a 3 meses, o número de horas proporcional à duração do contrato nesse ano”. Pretende-se assim diferenciar as microempresas, que são as empresas que empregam menos de 10 pessoas e têm um volume de negócios anual ou balanço total anual de até 2 milhões de euros.

Além da formação contínua, o Código do Trabalho prevê que o exercício de funções acessórias por parte de um trabalhador que exijam “especial qualificação” seja conjugado com formação profissional. Mas se no atual articulado se aponta para um mínimo de 10 horas anuais, na sua reformulação, se aprovada, cai o número de horas mínimo, deixando-se em aberto. Por outro lado, não dar formação deixa de constituir, neste caso, contra-ordenação grave para ser leve.

Há algumas alterações propostas no anteprojeto da reforma laboral em relação ao teletrabalho. Mas uma das principais é a pretensão de se poder estabelecer regras menos favoráveis aos trabalhadores por contratação coletiva. O que atualmente não é possível. “O teletrabalho é atualmente uma das matérias em relação à qual a contratação coletiva só pode dispor em sentido mais favorável aos trabalhadores. Nos termos da proposta de reforma em cima da mesa, deixa de o ser, ou seja, a contratação coletiva passa, em determinadas circunstâncias, a poder prever regras menos favoráveis do que as que estão plasmadas no Código do Trabalho”, explica ao Observador Rui Vaz Pereira e Inês Anjos, advogados da área de Laboral da Cuatrecasas.

Por outro lado, há a revogação de duas normas que preveem que o trabalhador pode opor-se sem fundamentar ao teletrabalho proposto pelo empregador e que o empregador tem de fundamentar a recusa caso a proposta de teletrabalho seja compatível com o funcionamento da empresa. Qual o alcance destas revogações? Para os advogados da Cuatrecasas significa que “a lei passará a ser omissa em relação à recusa pelo trabalhador e pelo empregador de proposta de teletrabalho apresentada pela outra parte, mas a eliminação dos números 6 e 7 do artigo 166.º parece apontar para um reforço da autonomia das partes nesta matéria, ou seja, baseando-se o teletrabalho num acordo entre as partes (e excluindo as situações em que o trabalhador pode impor o teletrabalho), as alterações à lei parecem vir confirmar que ambas as partes são livres para – sem que tenham de apresentar qualquer justificação – recusar a proposta de teletrabalho vinda da outra parte”.

Outra norma que se pretende revogar é a que impõe ao empregador a realização de exames de saúde e segurança no trabalho em contexto do teletrabalho. Por outro lado passará a ser possível ao trabalhador, mediante comunicação enviada ao empregador com, pelo menos, 5 dias de antecedência, alterar temporariamente o local de trabalho previsto no acordo de teletrabalho, “o que, contudo, só se tornará eficaz se o empregador não opuser a essa alteração durante os referidos 5 dias”, salientam os mesmos advogados.

Quanto às despesas que o empregador tem de assumir nos casos de teletrabalho, embora se altere a redação da norma a Cuatrecasas não vê grandes mudanças. Diz, mesmo, que “parece, sim, haver uma simplificação na redação da norma (é eliminada a referência expressa aos “acréscimos de custos de energia, rede instalada no local de trabalho em condições de velocidade compatível com as necessidades de comunicação de serviço, bem como custos de manutenção desses equipamentos e sistemas”, embora não parece que se excluam esses acréscimos do conceito de despesas adicionais) e a confirmação de que o valor da compensação pelas despesas adicionais deve ser apurado proporcionalmente quando houver alternância entre trabalho remoto e presencial, algo que muitas empresas já aplicavam na prática”.

Tinha sido revogado em 2019, com o Governo de António Costa, e agora o Governo da AD quer recuperar. Na reforma laboral que entregou aos parceiros sociais aparece o banco de horas individual ressuscitado, ainda que com alterações “relevantes” face ao regime anterior datado de 2012. É por isso que Rui Vaz Pereira e Inês Anjos, advogados da área de Laboral da Cuatrecasas argumentam que “em termos práticos, o banco de horas individual — que era um poderoso instrumento que as partes no contrato de trabalho tinham ao seu dispor para organizar o tempo de trabalho — regressa em formato 2.0, com um nível de regulação e detalhe substancialmente superior”.

Em ambos os regimes (de 2012 e o proposto agora) a instituição do banco de horas era possível por acordo entre empregador e trabalhador, permitindo o aumento do período normal de trabalho até duas horas diárias, com um máximo de 50 horas semanais e um limite anual de 150 horas.

Mas, agora, passará a exigir-se que o acordo regule a compensação do trabalho acrescido, a antecedência de comunicação da prestação adicional e de redução de trabalho, mas que também inclua “expressamente um período de referência que não pode exceder quatro meses”. No final desse período de referência de quatro meses, diz o anteprojeto, considera-se “saldada a diferença entre o acréscimo e a redução do tempo de trabalho”, e caso exista saldo a favor do trabalhador, o total de horas não compensadas devem ser pagas em dinheiro, lê-se no anteprojeto. Para a Cuatrecasas tal “clarifica o regime de compensação e elimina potenciais dúvidas ou litígios sobre o tratamento dessas horas”.

No que respeita à forma de instituição do banco de horas, o regime de 2012 permitia que o acordo fosse celebrado mediante proposta escrita do empregador, admitindo-se uma aceitação tácita. Mas “a nova redação elimina esta presunção, exigindo acordo expresso do trabalhador ou adesão voluntária a regulamento interno, reforçando, assim, a necessidade de consentimento informado e voluntário por parte do trabalhador”.

A Cuatrecasas aponta ainda “outra alteração de relevo” que tem a ver com a comunicação da necessidade de prestação de trabalho adicional. “O regime de 2012 não previa qualquer antecedência mínima para essa comunicação, enquanto a atual proposta impõe ao empregador o dever de comunicar ao trabalhador tal necessidade com uma antecedência mínima de três dias, ou, em situações excecionais, logo que possível”.

O anteprojeto prevê, ainda, um regime transitório, estabelecendo que o regime jurídico em vigor se mantém até ao termo do período de referência em execução à data da entrada em vigor de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho sobre a matéria, assegurando estabilidade e previsibilidade na transição para o novo regime”, dizem os mesmos advogados.

Já no banco de horas grupal deixará, caso avance o anteprojeto, de haver referendo na empresa para a sua instituição, “num procedimento que é relativamente complexo e que, por isso mesmo, muitas vezes coibia as empresas de o tentar aplicar”. No anteprojeto esse banco de horas grupal “implica a anuência de 75% dos trabalhadores da equipa, secção ou unidade económica que se pretende abranger (face aos anteriores 65% dos trabalhadores abrangidos pela proposta de referendo)”, mas “ao eliminar todo o procedimento do referendo (e em certos casos, a própria intervenção da ACT) agiliza o processo e facilita a instituição desta figura no seio das empresas”.

Um trabalhador independente passará a ser considerado como estando em dependência económica de um empregador se o seu rendimento provier em 80% da mesma entidade, na versão do anteprojeto do Governo. Atualmente para determinar dependência económica basta que metade do rendimento seja de uma única empregadora.

“Esta alteração traz algumas consequências”, assume ao Observador o especialista em Direito Laboral, Pedro da Quitéria Faria, sócio da Antas da Cunha ECIJA. Esta dependência de 80% determina, já, uma taxa contributiva por parte da entidade contratante para a segurança social diferente dos restantes casos de trabalho independente. “O critério da dependência económica acaba sempre por ser um fator (instrumental) importante para a eventual qualificação de uma prestação como sendo verdadeiramente dependente e subordinada, ou seja, poderá ter impactos (ainda que não diretos ou automáticos) nas ações para reconhecimento da existência de um contrato de trabalho”. Recentemente, diz, houve ações inspetivas em que “o critério (na minha ótica mal adotado) do percentual de uma atividade prestada por um trabalhador independente foi motivador de algumas requalificações de contratos de prestação de serviços em contratos de trabalho”.

A equipa de laboral da SRS Legal acrescenta que esta alteração irá reduzir também “o número de situações em que estes prestadores externos ficam abrangidos por normas de instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho negociais em vigor no âmbito do mesmo setor de atividade, profissional e geográfico. No entanto, alerta que o que se preconiza agora para o Código do Trabalho ficará dissonante do regime contributivo que define as regras para trabalhadores independentes alterado em 2018 e que põe a dependência económica nos 50%.

No Código de Trabalho o critério da dependência económica está, atualmente, também nos 50% mas pretende-se elevar para os 80%. O que também poderá ter impacto para os prestadores de serviço com base em plataformas digitais.

É que no caso das plataformas digitais o anteprojeto assume que a existência de contrato de trabalho pressupõe que haja “cumulativamente” a existência de dependência económica e de uma prestação de atividade regular. Mas o que é isso de atividade regular?

Não existe um “conceito de regularidade no Código do Trabalho”, apontam em respostas ao Observador os coordenadores no departamento de Direito Laboral da SRS Legal, Ana Margarida Henriques, Joana Brisson Lopes e Lara Pestana Vieira, para quem a alteração proposta “reflete o reconhecimento de que o Código do Trabalho já continha, antes da Agenda para o Trabalho Digno, normas aptas a regular novas realidades”. E, assim, com a alteração “parece ser intenção do legislador clarificar que é de qualificar como laboral a relação (i) a que se estabelece entre um prestador e uma “plataforma digital” (conceito em si mesmo discutível), (ii) concretizada na execução de uma atividade certa, estável e duradoura, (iii) contra o pagamento de uma remuneração, (iv) e com subordinação jurídica face ao beneficiário dessa atividade, (v) que suporta 80% do rendimento do prestador”. O que poderá excluir “as situações, com que diariamente nos deparamos, nas quais um prestador desenvolve a sua atividade em benefício de diferentes plataformas, escolhendo-as livremente, ao longo da jornada, sem obter de qualquer delas a referida parte substancial do seu rendimento”.

Pedro da Quitéria Faria assume, também, que “a lei não define expressa ou quantificadamente o carácter de regularidade”, mas, no entanto, “podemos encontrá-la abundantemente na nossa jurisprudência” e, por isso, “podemos considerar uma atividade regular aquela em que ocorra um pagamento relacionado com a prestação oferecida pelo trabalhador, de forma sistemática e dentro de um intervalo previsível e repetido”. A questão crucial neste novo artigo é, assim, “a frequência e a periodicidade desses pagamentos, o que implica um carácter constante ao longo do tempo”. A formulação desse artigo que este advogado “saúda” traz, no seu entender, “uma clareza e objetividade em comparação com o regime em vigor”.

É que, segundo aponta, “qualquer prestador que preste a sua atividade a uma plataforma e que pretenda ver reconhecida essa atividade como estando ao abrigo de um contrato de trabalho, com a nova redação proposta, não terá menos chances por esta via de o vir a conseguir. Bastar-lhe-á a invocação de indícios (bastarão 2) e prova, da existência de um contrato de trabalho, para que possa ser reconhecido o seu vínculo como trabalhador dependente”, nos termos dos artigos propostos para as plataformas digitais. Ou seja, conclui, “esta alteração vai mais ao encontro da diretiva, do que a redação que temos atualmente”.

Também a equipa da SRS Legal conclui que, “ainda que tal pareça conduzir a uma redução das hipóteses potencialmente qualificáveis como contrato de trabalho com plataforma digital, esta alteração permite um enquadramento mais correto de situações menos claras, sem impor uma qualificação que as partes legitimamente não pretendem”.

Atualmente só as microempresas podem não reintegrar um trabalhador ilicitamente despedido. Mas essa possibilidade poder-se-á abrir a todas as empresas. Segundo o anteprojeto, o empregador pode pedir em tribunal que trave a reintegração “com fundamento em factos e circunstâncias que tornem o regresso do trabalhador gravemente prejudicial e perturbador do funcionamento da empresa”.

“Uma alteração bastante relevante, pelo menos em termos teóricos”, segundo a Cuatrecasas, já que “a formulação genérica agora proposta passa a ser aplicável a qualquer empresa, independentemente da sua dimensão, ou seja, passa a ser possível a qualquer empresa opor-se à reintegração dos trabalhadores em caso de despedimento julgado ilícito”. Ainda que o tenha de fundamentar o que, sugerem os advogados desta firma, “pode revelar-se complexo na prática”. A sociedade de advogados socorre-se mesmo da sua experiência para indicar que “são raríssimos os casos em que os tribunais têm aceitado a oposição à reintegração, pelo que não é certo que esta ampliação do âmbito subjetivo da oposição à reintegração signifique uma maior facilidade na oposição à reintegração”.

Os despedimentos por justa causa em microempresas tinham uma via verde que agora é estendida às PME (até 249 trabalhadores), desde que o trabalhador em causa não seja da comissão de trabalhadores ou representante sindical.

A instauração do processo disciplinar tem à mesma de ser feita, o que implica vários passos para que o despedimento seja considerado lícito.

Como explica a Cuatrecasas, “no procedimento dito ‘normal’, o empregador só pode emitir uma decisão final de despedimento após receber os pareceres das estruturas representativas dos trabalhadores ou decorrido o prazo para o efeito, e deve comunicar a decisão a estas entidades. No caso das microempresas – desde que os trabalhadores não sejam membros de comissão de trabalhadores ou representante sindicais – o empregador pode proferir a decisão em (i) 30 dias a contar do termo do prazo para resposta à nota de culpa (caso o trabalhador não responda) ou (ii) 30 dias a contar da conclusão da última diligência instrutória, sem necessidade de pareceres ou comunicações a estruturas representativas, tornando o processo mais expedito”. Estas regras aplicadas atualmente às microempresas passam a ser estendidas às PME.

A declaração médica fraudulenta já é motivo que pode consubstanciar justa causa para um despedimento. No anteprojeto do Governo estende-se essa possibilidade à autodeclaração de doença (que passou a ser possível) com intuito fraudulento.

Foi uma batalha parlamentar na Agenda do Trabalho Digno, mas acabou por ficar inscrita o impedimento de o trabalhador poder renunciar, por acordo, aos créditos laborais (valores a que o trabalhador tem direito na cessação de um contrato). E, assim, o crédito ao trabalho só pode, atualmente, ser extinto por transação judicial.

O Governo da AD quer reverter essa norma. E por isso inscreve no anteprojeto a possibilidade do crédito ao trabalhador ser “suscetível de extinção” “nos casos em que o trabalhador declare expressamente a renúncia ao mesmo em declaração escrita reconhecida notarialmente”. Ou seja, tem de ir a notário, mas já não ao tribunal, não podendo simplesmente abdicar dele.

As propostas no anteprojeto do Governo para as convenções coletivas trazem algumas mudanças face ao que vigora atualmente. Assim, o prazo mínimo de vigência das convenções coletivas passa a ser de dois anos, face aos atuais 12 meses. Ainda que possa ser estipulado prazo distinto.

Segundo explicam ao Observador os advogados da Cuatrecasas, com as normas propostas, “por defeito, as convenções não podem ser denunciadas antes de decorridos dois anos, o que pode ser visto como mais favorável ao empregador, e de certa forma para o trabalhador, pois estabiliza a previsibilidade das condições laborais durante um maior período. Por outro lado, alarga o horizonte temporal de renegociação das convenções coletivas de trabalho”.

Eduardo Castro Marques, da Dower, realça que “continua a estar na disponibilidade das partes a fixação do prazo de duração da convenção coletiva, sendo que no anteprojeto vem prever-se a possibilidade de as partes celebrarem a convenção coletiva por tempo indeterminado” ou por um prazo inferior. Caso a convenção não estabeleça um prazo inferior, terá o tal prazo mínimo de vigência de dois anos, renovando-se sucessivamente pelo prazo de 1 ano em caso de ausência de estipulação pelas partes. Trata-se de um prazo mínimo e não de um prazo máximo de duração de vigência da convenção”, realça.

Ainda assim prevê-se que as tabelas salariais possam ter prazo mínimo de um ano.

Para a denúncia da convenção, dá-se um prazo mínimo de 180 dias (6 meses) face ao termo do prazo. No caso de a convenção ter sido celebrada por tempo indeterminado, a denúncia pode ser feita a qualquer momento com a mesma antecedência de pré-aviso de 180 dias. Mas há que fundamentar essa denúncia. Na proposta do Governo a denúncia deixa, no entanto, de poder ser alvo de recurso para arbitragem. Atualmente, em caso de denúncia pode haver recurso para o Conselho Económico e Social para apreciação de fundamentação. Deixará de existir essa possibilidade.

Após a denúncia, segundo a proposta, a convenção sobrevive durante a negociação (incluindo conciliação, mediação ou arbitragem voluntária) para nova redação durante um ano, prorrogável, mediante acordo, por mais um ano. A falta de acordo, findo este prazo, tem de ser comunicado ao Ministério do Trabalho e às partes, caducando, de seguida, a convenção no mês seguinte à comunicação.

Há ainda mudanças para os trabalhadores não sindicalizados. Quando a convenção coletiva abranja mais de metade dos trabalhadores pode ser aplicada a outros empregados por determinação do patrão a menos que haja expressa oposição, num prazo de 15 dias, por parte do trabalhador não sindicalizado. Nestes casos a aplicação da convenção pode terá um prazo máximo de cinco anos (atualmente é fixada nos 15 meses). O anteprojeto pretende reverter outra norma inscrita com a Agenda do Trabalho Digno que prevê o alargamento da convenção da empresa a trabalhadores contratos em regime de outsourcing, se lhes fosse mais favorável.