Uma história real, silenciada e potente ganha forma neste 17 de outubro em Pelotas. O livro Os quilombolas do General Manoel Padeiro, do escritor e produtor cultural Duda Keiber, narra a trajetória de resistência de um grupo de homens e mulheres escravizados que, em 1835, formou um quilombo itinerante na Serra dos Tapes — região que hoje abrange Pelotas, Canguçu, Arroio do Padre e São Lourenço do Sul. Liderado por Manoel Padeiro, o movimento enfrentou o sistema escravocrata com táticas de guerrilha, redes de apoio e construção coletiva.
Em entrevista ao programa Contraponto, da RádioCom Pelotas, Duda Keiber compartilhou detalhes da obra, que será lançada na noite desta sexta-feira na OTROPORTO Indústria Criativa. Além do livro, o projeto conecta a história ancestral à memória viva de descendentes, como Vera Macedo, trineta de Manoel Padeiro. Ilustrado por Alisson Affonso e com participações de pesquisadores e artistas, o livro é gratuito e integra o edital da Lei Paulo Gustavo.
A saga de resistência na Serra dos Tapes
Pouco conhecido fora de círculos acadêmicos, Manoel Padeiro foi o líder de um dos mais expressivos movimentos quilombolas do sul do Brasil. Diferente dos quilombos fixos, o grupo de Padeiro adotava uma estratégia itinerante, transitando entre matas, serras e rios, o que dificultava sua captura. As primeiras menções ao bando aparecem em registros da Câmara de Vereadores de Pelotas em 1835, ano do início da Revolução Farroupilha.
Segundo Duda Keiber, o grupo promovia ataques estratégicos a fazendas, realizava trocas com alforriados e mantinha uma rede de comunicação com senzalas da região. “Eles trocavam milho por pólvora, por cachaça, criavam pequenas lavouras e resistiam ao frio, à fome, à perseguição. Era uma guerrilha de sobrevivência”, relata. Entre as figuras do grupo estavam a Preta Rosa, mulher armada com facas, e o juiz de paz João, considerado o ancião da resistência. A violência dos confrontos, frequentemente destacada nos documentos oficiais, contrasta com a ausência de reconhecimento histórico da brutalidade do sistema escravocrata.
O desaparecimento de Manoel Padeiro após o ataque miliciano de 16 de junho de 1835 criou um mito em torno de seu destino. Para alguns, ele teria ido para o Boqueirão, localidade de São Lourenço do Sul, onde possivelmente fundou outro quilombo e teve família. Foi ali que sua trineta, Vera Macedo, cresceu ouvindo histórias de um ancestral bravo, temido e respeitado.
Da pesquisa ao encontro com a memória viva
A construção do livro demandou anos de pesquisa em arquivos e também encontros decisivos. Duda destaca o papel das fontes orais, como os relatos de Vera Macedo, e dos processos históricos, como os depoimentos de quatro mulheres sequestradas e libertadas durante os ataques. Esses registros, somados à história oral preservada na família de Vera, possibilitaram cruzamentos únicos. “Ela dizia que esperava uma herança desde criança. Quando recebeu os documentos e relatos que embasam o texto, falou que aquilo era o verdadeiro tesouro”, conta Duda.
A narrativa do livro inclui personagens com nomes como Francisco Moçambique, Alexandre e Mariano — braço direito de Padeiro. A partir dos depoimentos, foi possível construir perfis psicológicos, rotinas, dinâmicas internas do grupo e até mesmo cenas detalhadas, como confrontos com capatazes e fugas em noites frias. “Esses personagens são reais, mas também são mitos. E o mito não é invenção — é memória coletiva, é o que sobreviveu”, afirma o autor.
As ilustrações de Alisson Affonso partem de briefings inspirados por cenas específicas do roteiro original, mas também ganharam liberdade criativa. “Ele entendeu a narrativa e a transformou em imagens fortes, belas e violentas ao mesmo tempo”, diz Duda. Um exemplo é a cabeça decapitada de Antônio Grande, capataz morto pelo grupo, desenhada com um realismo simbólico.
O audiovisual como extensão da luta
O livro é apenas o primeiro passo de um projeto mais amplo. Financiado pela Lei Paulo Gustavo e pela Prefeitura de Pelotas, o trabalho inclui a produção de um docudrama que mistura entrevistas e dramatizações. “A história do Padeiro é cinematográfica. Pode virar série, filme, peça de teatro. Eu fecho os olhos, imagino o futuro e vou até lá buscar ele”, brinca Duda.
Com arcos narrativos complexos, múltiplos personagens e conflitos históricos, o roteiro abre possibilidades para diferentes linguagens artísticas. O autor também cogita novas adaptações, como teatro de sombras, e convida artistas e produtores a se apropriarem da história — desde que com responsabilidade e respeito às fontes. “Essa história não é minha. Se tem uma dona, é a Verinha. E se tem um dono maior, é o povo preto”, reforça.
A produção também propõe um novo olhar sobre o território: “Pelotas não é só terra do doce e dos casarões. É território preto. E a história preta está em cada rua, em cada pedra, em cada prato que a gente come. Está na música, na linguagem, no corpo”. O livro busca justamente provocar esse reconhecimento, sobretudo entre as novas gerações.
Uma ferramenta de educação, memória e justiça
Duda Keiber define a obra como uma ferramenta de combate ao racismo e de reconstrução da memória coletiva. “Hoje, não basta não ser racista. É preciso ser antirracista. E esse livro é para brancos, pretos, amarelos, judeus, palestinos. É uma ferramenta de todos que quiserem construir uma sociedade mais justa”, declara.
O livro não tem nome de autor na capa — uma escolha simbólica que reforça o caráter coletivo da obra. “Eu fui só a máquina de costura. Quem brilha é a roupa”, resume o autor. Ao lado dele, colaboraram pesquisadores e profissionais como Daiane Garcia Molet, Caiuá Cardoso Al-Alam e Alexandre Mattos. A diagramação é de Valder Valerão. A ilustração, de Alisson Affonso, dá corpo e expressão a personagens esquecidos pelos livros escolares.
O evento de lançamento será marcado por uma celebração da ancestralidade: fogueira, tambores, roupas de palha, maquetes dos quilombos e a presença de Vera Macedo, a trineta de Manoel Padeiro, que organiza um centro de cultura em sua homenagem e é responsável pelo Bloco Carnavalesco do Maneco. Toda arrecadação do evento será destinada à memória e à família do líder quilombola.
Serviço
Lançamento do livro: Os quilombolas do General Manoel Padeiro
Data: Sexta-feira, 17 de outubro
Horário: 19h
Local: OTROPORTO Indústria Criativa — Pelotas/RS
Entrada: Gratuita
Descrição: Distribuição gratuita de exemplares no local. Sugere-se doação via PIX (R$ 10, R$ 30 ou R$ 50) para apoiar a família de Manoel Padeiro e o Centro Cultural criado por sua trineta, Vera Macedo.
Instagram da OTROPORTO: @otroporto
Confira a entrevista completa no canal da RádioCom Pelotas no YouTube.
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