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Por ALDA CRISTINA SILVA COSTA*

Considerações sobre o livro de Fábio Horácio-Castro

1.

O que caracteriza o realismo fantástico, em minha opinião – e não sou especialista no assunto, mas uma pesquisadora do campo da comunicação que dialoga com a hermenêutica e os sentidos da compreensão – é, basicamente, um sentimento de desconforto. O desconforto entre a realidade da leitura e o princípio da verossimilhança.

Nos textos literários não afetos ao realismo fantástico, a verossimilhança fornece a base, o suporte, para a leitura. Já nos textos afetos, participantes, do realismo fantástico, a verossimilhança é colocada em xeque – seja pela via do lirismo, seja pela da ironia. Creio que, até aqui, estamos, mais ou menos, de acordo. A ficção desconfia da ficção, mas resta ficção.

Não obstante, quando a narrativa apenas finge que coloca em cheque o princípio da verossimilhança, o que surge é um outro padrão de realismo fantástico. Neste padrão, duvidamos se a ficção resta ficção.

Digo isso penando no livro de contos do escritor paraense Fábio Horácio-Castro. Apontamentos sobre a cidade imaginária de Belém reúne contos que fingem que são ensaios, ou textos acadêmicos. Discussões geográficas a respeito de bairros que mudam de lugar, relatos etnográficos fictícios sobre povos amazônicos exterminados pela colonização, descrições de instituições que nunca existiram, testamentos políticos secretos que levariam à secessão da Amazônia do Brasil, análises literárias de uma escola poética inventada, relatos policiais de crimes que não ocorreram…

Tudo, nesse livro, transita entre a verossimilhança e o seu fingimento, produzindo uma dimensão diferente, talvez amazônica, para o realismo fantástico.

A ponto de que até a própria editora se tenha confundindo, colocando o livro, de contos, no seu catálogo de “ensaios”… O que, por sinal, não parece improvável, mesmo porque, para além da narrativa ironicamente “científica”, há o fato de que o autor, que segue a carreira literária com o nome de Fábio Horácio-Castro, também assine muitos trabalhos científicos com o nome de Fábio Fonseca de Castro, sendo, com essa alcunha, um dos cientistas mais referidos no campo da sociologia da cultura das populações amazônicas e professor do heroico Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, vinculado à Universidade Federal do Pará, um dos bastiões da luta socioambiental da Amazônia.

2.

O heterônimo do autor, na verdade, corrobora esse conjunto de camadas de sentido. O mesmo experimento esteve presente no seu romance de estreia, O réptil melancólico, que recebeu o prêmio Sesc de Literatura de 2021, sendo também indicado como finalista do Prêmio São Paulo e como semifinalista do Prêmio Oceanos, no ano de 2022.

Nesse outro texto já se entrevia essa outra formação do realismo fantástico: o jogo entre história, realidade, ficção e narrativa, com camadas superpostas de um insólito que não era devido aos fatos mágicos do texto, mas, sim, a uma superposição fantasiosa das camadas de sentido.

Apontamentos sobre a cidade imaginária de Belém, nos faz refletir a respeito do processo de configuração do fantástico e da contribuição desse autor para a invenção de um real-fantástico amazônico, um real-fantástico que transcenda a obviedade dos mitos tradicionais.

Identificamos três características maiores da sistematização desse gênero, ou dessa narrativa, que poderíamos denominar, com apoio da hermenêutica, de simulacro de realidade, simulacro de sobrerrealidade e dicotomia irônica.

Na obra em tela se percebe, primeiramente, uma camada de sentidos construída como simulacro de realidade. Trata-se da literatura em seu estado mais elementar, a narrativa que simula um ser social, com sua trama, personagens e eventos. Trata-se do próprio fundamento hermenêutico da literatura.

Em seguida, encontra-se uma segunda camada de sentidos, já associada à ideia de simulacro de sobrerrealidade, processo que evoca, particularmente, o gênero do realismo fantástico. Com Jean Baudrillard, em Simulacro e simulação, compreendemos o jogo de sobrenarrativas que o simulacro impõe à simulação. Trata-se disso: de duvidar, questionar, a simulação, na produção narrativa do incômodo diante dos fatos sociais propositadamente exagerados e cravejados de verossimilhança.

Dessa superposição de camadas, produz-se uma dicotomia, que pode enganar a boa-fé do leitor desavisado mas que é absolutamente irônica, sem enunciar e nem desvelar, sua ironia.

Apontamentos sobre a cidade imaginária de Belém pratica uma ironia muito discreta: finge uma realidade realista. Finge que faz ciência e, ao fazê-lo, simula a própria ficção. É muito difícil não acreditar na voz do professor, do cientista, do pesquisador politicamente engajado que inventa a realidade de um lugar pouco realista (a cidade de Belém, com seus palimpsestos históricos e socioculturais, sempre será um enigma, tanto para cientistas como para seus habitantes).

É difícil negociar com uma verossimilhança que transcende o pacto literário para alcançar (ou ironizar, e criticar) o pacto narrativo da realidade (histórica, geográfica, antropológica, sociológica, literária…) pela ciência.

3.

O real fantástico da obra de Fábio Horácio-Castro reside num jogo de simulações e de circulações entre o aspecto de realidade e o de sobrenaturalidade. De um lado, tem-se a imitação de um cenário integralmente realista, pertinente, por verossimilhança, ao universo do leitor; de outro, tem-se a transgressão do ambiente realista da narrativa, dada, em seu caso, e diferentemente do real-fantástico clássico, não pela aparição de algum personagem ou evento, tipologicamente, sobrenatural, mas sim pela sobrenaturalidade da própria narrativa.

Esse processo remete à formulação de Todorov (1975) sobre o real-fantástico, segundo a qual, diante da sobrenaturalidade, o leitor tem duas opções possíveis: ou trata-la como uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação (e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são); ou tratá-la como um acontecimento que realmente ocorreu, que é parte integrante da realidade (pressupondo, nesse caso, que a realidade é regida por leis desconhecidas para nós).

Podemos acrescentar que, na obra de Horácio-Castro, estando o centro do real-fantástico na formulação da linguagem – e não nos personagens ou acontecimentos da história – somos levados a descartar a primeira hipótese para assumir o pressuposto de uma realidade fugidia. O leitor passa a ser orientado por sua própria noção de realidade, coetânea ao seu ambiente físico e social.

Não obstante, repentinamente, dá-se conta de que a sobrerrealidade é, deveras, ficção. E daí o sentimento de desconforto que mencionei acima. O desconforto entre a realidade da leitura e o princípio da verossimilhança.

Trata-se, efetivamente, do princípio da desconstrução, que pensamos ser a essência dessa obra literária. Se, com sugere Jacques Derrida, “desconstrução” significa uma ruptura do logocentrismo por meio do qual as narrativas dominantes se constroem, Apontamentos sobre a cidade imaginária de Belém significa, não apenas, uma desconstrução da cidade de Belém mas, também, uma desconstrução dos padrões narrativos da história, da geografia, da antropologia, da sociologia… Uma desconstrução, que se efetiva por meio de uma ironia discreta.

O autor ironiza, na sua obra, a própria ideia de verossimilhança e, com isso, ironiza o próprio fundamento do realismo fantástico. Nesse sentido, a ideia de desconstrução operada, diz respeito não apenas à cidade “imaginária” de Belém, mas à teoria “imaginária” da literatura.

*Alda Cristina da Silva Costa é professora do programa de pós-graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia, da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Referência

Fábio Horácio-Castro. Apontamentos sobre a cidade imaginária de Belém. São Paulo, Editora Patuá, 2024. [https://abrir.link/Pijyc]

Bibliografia

BAUDRILLARD, Jean. Simulacro e simulação. São Paulo: Relógio d’Água, 1991.

DERRIDA, Jacques. L’écriture et la différence, Paris: Seuil, 1967.

________ De la grammatologie, Paris: Minuit, 1967.

TODOROV, Tzevan. Introdução a literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1975.

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