Em pouco tempo, a pacata localidade alemã de Baden-Baden passou a ter a alcunha de Shopping-Shopping. As manchetes dos tabloides caprichavam no detalhe. Os 60 pares de óculos escuros que Victoria Beckham tinha levado consigo, os raides de compras na ordem das dezenas de milhares de libras, o laranja do bronzeado falso, as extensões de cabelo (tom caramelo, claro), os micro calções, os saltos altíssimos, as garrafas de Moët e os Vodka Red Bull, as Birkins de diferentes cores, as ressacas e as festas no hotel. Os ecos chegaram às páginas de todo o mundo e o espanhol ABC chegou ao ponto de chamá-las de “hooligans com cartão de crédito”, esmiuçando as frivolidades que se iam desenrolando fora de campo. Estávamos em julho de 2006, tempo de Campeonato do Mundo, e de concentração máxima da seleção inglesa na prova disputada na Alemanha. Só que não. Para a história passou o desaire antecipado frente a Portugal, os excessos à margem dos relvados e, sobretudo, a consagração da cultura das WAG’s, o acrónimo para Wives and Gilfriends, ou o elenco de mulheres e namoradas dos futebolistas, acusadas de ensombrar e arruinar a prestação inglesa (pelo menos a avaliar pelas críticas mais misóginas).

“Enterrei as minhas mamas falsas em Baden-Baden” é uma das frases com mais potencial viral do documentário Netflix sobre a vida e carreira de Victoria Beckham – e que nos faz recuar quase vinte anos. A ex-Posh Spice, ex-Spice Girl tornada designer de moda de sucesso, assinalava o epitáfio da sua jornada WAG, para uma metamorfose absoluta (que incluiu cortar o cabelo, retirar os implantes mamários e refinar todo o seu estilo). Para poder ser levada a sério, Victoria admite que teve que mudar o look de alto a baixo. O rótulo definharia por volta de em 2010, quando Fabio Capello lhes chamou (às namoradas e mulheres dos futebolistas ingleses — e não só) “um vírus” e as baniu do mundial desse ano. Mas as memórias não morrem. Muito menos a sua influência na cultura popular.

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FilmMagic

O interesse mediático pelas aparições públicas de nomes como Victoria, Coleen Rooney ou Sheryl Cole, companheiras de outras estrelas da equipa, não era novo. Graças a elas e à sua imagem estridente, os jornais e revistas terão vendido como nunca. Fofoca atrás de fofoca, escândalo atrás de escândalo, saco de compras atrás de saco de compras, pressão atrás de pressão, crítica atrás de crítica. O que é que elas sabiam fazer melhor? Gastar dinheiro. Tornaram-se cabeças de cartaz do movimento “Brits abroad”, simbolizando para muitos tudo o que estava errado no país. Elas bebiam, elas fumavam, elas até cantavam karaoke e dançavam em cima de colunas. E já escrevemos que gastavam muito dinheiro? Já, mas escrevemos de novo.

Victoria Beckham não faz tostas, mas sabe fazer vestidos

Ao longo de três episódios deste seu documentário na plataforma de streaming, Victoria não poupa o acosso dos media e o tratamento que hoje seria impensável. Vale a pena também lembrar que o apogeu das redes sociais e o controlo da narrativa ainda estava por vir e que a história se fazia entre aparições in loco. O impacto desta tribo tão rara quanto polémica atingira o zénite naquele verão, no mesmo sítio que outrora funcionou como estância estival da rainha Victoria. O nome da dona da coroa mantinha-se mas o parque de diversões era outro. Ah, e não era propriamente uma despedida de solteira mas a fase final de um campeonato do mundo.

“Foi full-on. Eles não descansaram, nem nós. Os nossos dias de descanso eram quando éramos enviados para cobrir os jogos de Inglaterra”, recordou a certa altura o fotojornalista Andrew Stenning, descrevendo as rotinas diárias a partir de junho. “Tomavam o pequeno almoço, talvez fizessem uma corrida na cidade, depois as compras, depois o regresso ao hotel”. “Aquilo tornou-se um bocado um circo”, admitiu em 2008 Rio Ferdinand. “O futebol quase se tornou um elemento secundário no evento principal. As pessoas estavam mais interessadas no que vestíamos ou onde íamos do que na equipa de futebol em si”. Ainda este mês o desperdício da Geração de Ouro do futebol inglês, entre “discussões e lutas de ego”, era debatido nos jornais.

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Victoria num supermercado em Baden-Baden, numa foto amadora

A luz verde viera do selecionador nacional inglês. O sueco Sven Goran Eriksson terá acedido ao desejo de David Beckham e não só permitido como incentivado que as companheiras e os filhos se juntassem aos jogadores nesta campanha, para desfrutarem da “maravilhosa atmosfera” de Baden-Baden, incluindo os seus cafés e restaurantes. De resto, quando a Federação Inglesa anunciou, em dezembro de 2005, que a comitiva nacional iria ficar instalada neste pacato destino, com a Floresta Negra em fundo, nada fazia prever o turbilhão seis meses depois. “Pensámos que seria tão recatado quanto possível”, acreditou o chairman Brian Barwick, já que o hotel e o centro de treinos ficava a relativa distância do centro da cidade. Era ali, no Brenners Park Hotel (onde a diária ascendia às mil libras e ficava a 20 minutos do Schloss Buhlerhohe Hotel onde se hospedavam os atletas) que as senhoras ficariam alojadas, podendo encontrar-se com os parceiros ocasionalmente.

Entre 23 selecionados, apenas Aaron Lennon, de 19 anos, viajou sozinho. Todos os restantes fizeram acompanhar-se por algum membro próximo ou da família. Contas feitas, a comitiva era composta por 110 pessoas. Com o seu spa Villa Stéphanie (onde até hoje a família Beckham faz o seu check up anual), ópera e um rio a fazer lembrar o charme de Bath, a temporada em Baden-Baden tinha tudo para correr bem. Pelo menos se os jornalistas não andassem por lá também, em busca da melhor foto e do episódio mais suculento. Protagonistas para alimentar as rotativas não faltavam. Victoria era a “Rainha das WAGs”, segundo a cunhou a New Yorker e a reportagem fotográfica no arquivo mostra que em larga medida se manteve a leste das andanças do resto do grupo — até porque trazia consigo os dois filhos mais velhos.