Foi numa sala de conferências do Centro de Política de Segurança de Genebra (GCSP), no coração das Nações Unidas, onde diplomatas e líderes mundiais debateram esta semana o futuro da paz mundial, que Erika Gónzalez expôs uma série de dez colagens em seda, veludo e espelhos para convidar a refletir sobre o trauma e a assimetria de poder que sustentam a prostituição e a normalização dos danos infligidos aos corpos das mulheres.


A exposição nasce da sua vivência pessoal, mas também da vivência coletiva através dos testemunhos de outras mulheres nessa situação, que acompanhou durante oito anos na Bélgica, país onde viveu e trabalhou. “É um trabalho, ao mesmo tempo muito íntimo, muito político e autobiográfico”, disse. 


Em entrevista à RTP Notícias, Erika González explica que a arte é “uma ferramenta política e de sensibilização”, que dá a oportunidade de denunciar as falsas narrativas que o patriarcado consolidou sobre o corpo e o consentimento. “A arte ajuda a desmontar os mitos que sustentam instituições violentas como a prostituição, disfarçada de trabalho ou de consentimento”, afirma.


A artista comprometida com a defesa dos direitos das mulheres rejeita
“ficar de braços cruzados” e apela a uma sociedade menos adormecida. “Estamos super adormecidos, há problemas como a prostituição, que preferimos não ver. A prostituição é um problema de todos e de todas”, observa.


“Se queremos a paz temos de enfrentar as violências”


Erika González Ramírez defende que não se pode falar de paz sem enfrentar as violências que a negam. “Somos uma sociedade traumatizada, se queremos caminhar para
uma cura da humanidade, temos que começar a falar das coisas
incómodas: sem culpas, mas com responsabilidades
“. 

A presença da exposição “ASIMETRIA” na Geneva Peace Week, trazida pela galeria suíça Satellites of Art que procura causar impacto social através da promoção da “arte com sentido”, não é casual. Erika González acredita que a violência e a paz são opostos complementares que precisam de ser discutidos juntos.

“A prostituição e a violência são o antípoda da paz. Por isso parece-me tão pertinente falar de prostituição aqui (na Semana da Paz de Genebra). Se queremos construir a paz, temos que enfrentar as violências que a impedem, inclusive as que a sociedade insiste em invisibilizar”, afirma. 


Para a artista o convite da organização para incluir uma exposição sobre a prostituição na Semana da Paz foi um gesto corajoso. “Pareceu-me bastante arriscado e corajoso que quisessem visibilizar estas temáticas”. 



O caso de Gisèle Pelicot como ponto de viragem


Questionada sobre como lida com a exposição da sua experiência pessoal através da arte, a artista explica que “agora sinto-me numa posição forte para poder mostrar a minha vulnerabilidade”, devido à realização profissional que alcançou nos últimos anos, como jornalista, realizadora, e funcionária na União Europeia. “Mas há muitos anos, não teria conseguido fazer isso”, admite.


O principal ponto de viragem na sua trajetória foi o caso de Gisèle
Pelicot, em 2024, uma mulher que, após ser abusada decidiu denunciar
publicamente o seu violador e afirmar que “a vergonha deve
mudar de lado”, uma frase que deu força à causa defendida pela artista colombiana.


“Um ponto de inflexão foi o caso de Gisèle Pelicot, ver como ela – que tinha sido violentada de forma tão forte por alguém que
ela amava muito e por muitos outros homens – decide fazer um
julgamento aberto contra o seu violador e o seu proxeneta, porque ele
também era um proxeneta, e decide dizer que a vergonha tem de mudar de
lado”. 
 


“Quando penso que é difícil falar destas temáticas, lembro-me disso: “a vergonha tem que mudar de lado”, confessa. “Precisamos mostrar a magnitude de uma violência que o sistema insiste em negar”


“Somos uma mercadoria”

Na exposição “ASIMETRIA” a artista denuncia a desigualdade que existe entre quem paga e quem compra, razão pela qual não quis mostrar apenas a vulnerabilidade e o trauma da mulher no “papel de vítima”, quis também mostrar o outro ator da história, trazendo à luz quem exerce a violência.“Porque a prostituição é um ato muito violento”, defende.


“Parece-me muito importante mostrar quem é esse outro ator, protegido e branqueado pela sociedade, que insiste em chamar-lhe de forma politicamente correta de cliente, quando na realidade é um violador e um abusador”, afirma. “Não é porque há uma nota de dinheiro envolvida que não é um ato abusivo”, afirma. 


“Somos uma mercadoria”, considera a feminista, denunciando que existe na prostituição uma desumanização dos homens em relação ao corpo das mulheres. Razão pela qual quis representar esse sentimento na obra “Cuánto me cobra” (Quanto me cobras?, na tradução em português), que questiona “por quanto posso comprar-te?”, “quanto custa o teu consentimento?. 


Mas é o consentimento um ato livre?


 

Erika González Ramírez questiona a noção de consentimento numa sociedade patriarcal, onde considera que “a grande maioria das mulheres” sofre algum tipo de violência, e capitalista, que comercializa tudo inclusíve o corpo das mulheres. 


Para a artista, a escolha não pode ser considerada livre quando é moldada pelo trauma, pela desigualdade e pela pobreza que, na sua opinião, “é uma violência em si mesma”. “A imensa maioria das mulheres que vivem da prostituição chegaram lá porque têm um trauma e saem de lá ainda com mais traumas”. 


Inspirada pelos estudos da psiquiatra francesa Muriel Salmona, autora da obra Le livre noir des violences sexuelles, a artista defende que a prostituição é raramente um ponto de partida e é inseparável de um contexto de violências anteriores. 

“Se és uma menina, pobre, que já sofreste alguma forma de violência, és uma presa fácil do sistema de prostituição”, defende.

Em ASIMETRÍA, cujas obras podem ser observadas nas redes sociais da artista, Erika González denuncia a violência, o trauma e a assimetría de poder abrindo caminho para o diálogo, “sem culpas, mas com responsabilidades”, lembrando que falar do incómodo é o primeiro passo para construir a paz. 

A Semana da Paz de Genebra contou também com a exibição do documentário The Illusion of Abundance, co-produzido por Erika Gónzalez, que destaca o papel fundamental de três mulheres latino-americanas na defesa do ambiente e dos territórios.  O filme foi selecionado para mais de 140 festivais em todo o mundo e recebeu mais de 30 prémios internacionais.