ENTREVISTA || O economista Ricardo Paes Mamede defende que o mercado de trabalho em Portugal não é rígido e diz que as propostas de alteração à legislação laboral propostas pelo Governo que estão em discussão resultam numa “enorme redução do poder negocial” dos trabalhadores, que tem implicações não apenas nos rendimentos, mas também nas suas condições de vida
(Foto de capa: Fotos: João Girão/Sol)
Os representantes das associações empresariais que estão constantemente a reclamar uma maior flexibilização da legislação laboral como fator decisivo para a competitividade das empresas “representam segmentos da economia portuguesa que são pouco sofisticados e que estão apostados na competitividade da economia portuguesa baseada no trabalho descartável”. Quem o diz é o economista Ricardo Paes Mamede que, em entrevista à CNN Portugal, garante que não há na literatura económica nada que diga que a desregulamentação do mercado de trabalho “provoca mudanças relevantes ao nível do crescimento económico ou da competitividade”.
Num momento em que o emprego está em níveis historicamente elevados faz sentido discutir uma flexibilização da legislação laboral no sentido em que está a ser proposto pelo Governo?
Não sou sensível ao argumento da situação do atual mercado de trabalho como forma de contestação à mexida das leis laborais. O fator que determina a taxa de emprego e desemprego é a procura agregada, em particular a procura internacional, e não as regulações do mercado de trabalho. E, portanto, nesse sentido, não parece que essa seja a questão. Se fosse só essa a questão até seria um argumento adicional para fazer as alterações agora, porque seria muito melhor fazê-las quando as coisas estão bem do que quando estão mal.
Que problemas encontra?
O problema é que, mais uma vez, os benefícios e os custos não estão a ser devidamente ponderados. O que está a ser proposto é, efetivamente, uma enorme redução do poder negocial de uma das partes, que tem implicações não apenas nos rendimentos, mas também nas condições de vida das pessoas. A capacidade de organizarem o seu dia de trabalho, de organizarem a sua semana de trabalho, de organizarem o seu ano, de compatibilizarem a vida familiar com a vida profissional. O que está em cima da mesa é uma redução muito substancial do poder de quem vive do seu trabalho e estes têm de ter uma palavra a dizer sobre as condições em que trabalham.
Estamos a aumentar a injustiça que existe nas relações de trabalho. E não temos muito que esperar do ponto de vista do desempenho da economia. Não há na literatura económica nada que nos diga que este tipo de alteração que está a ser sugerida, que é essencialmente uma desregulamentação do mercado de trabalho, provoca mudanças relevantes ao nível do crescimento económico ou da competitividade.
Um dos argumentos apresentados é o de termos um mercado dual, em que muitos têm uma relação laboral com muitas garantias e, outros, sem qualquer garantia…
Não me revejo nesse argumento. A economia portuguesa, do ponto de vista do funcionamento do mercado de trabalho, é muitíssimo mais flexível do que se sugere na maior parte das vezes. Nos debates públicos sobre o tema vejo sempre mencionado o mesmo indicador produzido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), que diz respeito a uma única variável, que é a facilidade dos despedimentos individuais. E aí Portugal aparece como tendo um mercado de trabalho muito rígido. No entanto, não só isso não se aplica ao conjunto do mercado de trabalho, por exemplo, os despedimentos coletivos em Portugal são muitíssimo mais fáceis do que na maior parte dos países, como esse próprio indicador dos despedimentos individuais foca-se em coisas que são pouco relevantes em muitos países.
Por exemplo…
O indicador aponta para que a facilidade de despedimento seja muito maior na Nova Zelândia do que em Portugal, no entanto, há estudos de caso que foram feitos pela Organização Internacional de Trabalho (OIT) e pela própria OCDE que mostram que, na prática, a facilidade de despedimento, mesmo individual, torna-se muito grande em Portugal.
Portanto, o meu primeiro elemento de ceticismo em relação ao que diz é o facto de não me rever na ideia de que há uma rigidez muito grande no mercado de trabalho em Portugal. Percebo que haja pessoas que se sentissem muito mais satisfeitas em poder contratar e despedir uma pessoa por dá cá aquela palha, mas não é assim que funcionam as sociedades civilizadas em geral. E as que funcionam têm problemas sociais muito graves aos quais devemos estar atentos.
Além disso, uma das coisas que aprendemos com a história do desenvolvimento de vários países, estou a pensar em países como o Japão, a Suécia, Singapura ou a Alemanha, é que mercados de trabalho extremamente flexíveis tendem a induzir padrões de especialização produtiva pouco qualificados.
Mais rigidez leva a maior especialização?
Ter algum nível da chamada rigidez, embora prefira usar a expressão regulação das relações laborais, não só tende a proporcionar condições de vida mais decentes a quem vive do seu trabalho, como acaba por induzir a atividade económica a focar-se em setores, produtos e serviços que não dependem de ter mão de obra descartável. É um empurrão no sentido do aumento da sofisticação da produção. Os quatro países que referi são tudo casos onde está historicamente demonstrado que foi esse o efeito que tiveram ao ter mercados de trabalho que protegiam mais a estabilidade das populações laborais.
Como se explica, então, o constante pedido das associações e confederações patronais para uma maior flexibilização da legislação? É ideológica?
É ideológica e de interesses. A parte ideológica é que há quem esteja mesmo convencido que a flexibilidade é boa para a competitividade. É mais ou menos intuitivo: se tiver a minha empresa e conseguir contratar e despedir com grande flexibilidade, consigo adaptar-me a todas as condições. Mas aquilo que se passa ao nível de uma empresa individual não se passa ao nível de uma economia como um todo. Este estímulo que estamos a dar àquele empresário específico está, na verdade, a contribuir para que, no seu todo, a economia esteja a focar-se em atividades menos exigentes, mais desqualificadas, mais facilitistas.
Depois, há o lado dos interesses…
… essa facilidade de despedir também não se vira contra as empresas individualmente, porque também vão ter mais concorrência na procura de trabalhadores e menos capacidade para os reter?
Certo, mas esse é um problema que, embora se possa assistir ao nível de uma empresa, tende a ser ainda mais relevante ao nível agregado. O que acontece, e também é muito discutido na literatura económica, é aquilo que se chamam os investimentos específicos. Não só o trabalhador tem menos incentivos para desenvolver competências que são específicas daquela empresa, como a própria empresa tende a apostar menos naquele trabalhador. E isso faz com que haja, em termos agregados, menos desenvolvimento de um investimento que não é genérico, não é ir à escola primária ou ao ensino secundário, é desenvolver competências técnicas que são muito específicas a uma determinada atividade produtiva e muitas vezes ao nível de uma empresa singular.
Ia falar no argumento dos interesses.
A melhor forma que tenho de o ilustrar é a seguinte: sigo os relatórios das consultoras internacionais que vão saindo anualmente e que são feitos junto de investidores estrangeiros que vêm iniciar atividade produtiva em Portugal. E quando se pergunta a esses investidores quais são os principais fatores, as principais vantagens e os principais bloqueios a que associam a economia portuguesa enquanto destino de investimento, nunca referem o mercado de trabalho como um problema.
Pelo contrário, há um relatório muito recente da EY, Portugal Attractiveness Survey, onde está lá, ipsis verbis, que o funcionamento do mercado de trabalho em Portugal é um fator de vantagem da economia portuguesa.
E tenho por hábito também ir visitar empresas. Devido à minha especialização académica e aos meus interesses de investigação, foco-me muito em empresas inovadoras. Empresas inovadoras que não têm de ser em setores de ponta, podem ser empresas inovadoras no setor têxtil, no setor da construção, no setor da biotecnologia ou das tecnologias de informação. Quando converso com empresários dessas atividades mais sofisticadas, nunca ouço dizer que eles têm um problema fundamental de falta de flexibilidade associada às leis laborais. Ouço outras queixas, mas não essa. E, portanto, a única conclusão que posso retirar é que aqueles que representam as associações empresariais, que focam sistematicamente o seu discurso no fator mercado de trabalho como decisivo para a competitividade das empresas, representam segmentos da economia portuguesa que são relativamente pouco sofisticados e que estão apostados na competitividade da economia portuguesa baseada no trabalho descartável.