“Nós, americanos, gostamos de colocar nossa cultura em recipientes descartáveis”, escreve Harper Lee (1926-2016). “Em nenhum lugar isso fica tão evidente quanto na maneira como tratamos nosso passado. Descartamos vilarejos, cidades pequenas e até mesmo cidades grandes quando envelhecem, e agora estamos no processo de descartar também os registros da nossa história.”
O sentido da argumentação que ela traça a partir daí é tão surpreendente quanto acertado, e não queremos estragar a surpresa dos leitores. O texto é intitulado Romance e Grandes Aventuras e está na coletânea póstuma A Terra da Doce Eternidade, com lançamento mundial nesta terça, 21. A edição brasileira, publicada pela José Olympio, tem tradução de Marina Vargas.
O volume é híbrido, apresentando 16 textos: oito contos do início da carreira da autora e oito “ensaios” (na verdade, peças variadas de não ficção que incluem uma palestra, uma aberta carta para Oprah Winfrey e uma receita culinária tão inusitada que parece um conto pós-modernista). Há, ainda, uma ótima introdução assinada pela jornalista Casey Cep.
Harper Lee morreu em fevereiro de 2016 e esses textos foram encontrados em seu apartamento, após sua morte.
Harper Lee, no início da carreira, quando foram escritos alguns dos textos reunidos agora em ‘A Terra da Doce Eternidade’ Foto: Michael Brown via Editora Record/Divulgação
Harper Lee: ‘O Sol é Para Todos’, ‘Vá, Coloque um Vigia’ e o novo livro
Nascida no interior do Alabama, Harper Lee é uma das escritoras mais queridas de que se tem notícia graças a um único romance: O Sol é Para Todos (1960; To Kill a Mockingbird no original), vencedor do Prêmio Pulitzer e um tremendo best-seller, com mais de 40 milhões de cópias vendidas mundialmente.
A popularidade do livro se deve ao talento da autora que, mesmo enfrentando temas pesados como violência sexual e racismo no Sul dos Estados Unidos na década de 1930, exala bom humor e calor humano. Boa parte disso é devido à escolha e à voz da narradora concebida por Lee: Jean Louise “Scout” Finch, que no começo da história tem apenas seis anos de idade e é filha de Atticus Finch, a “bússola moral” da cidadezinha sulista onde vivem e um dos personagens mais íntegros da história da literatura — que Atticus não soe inverossímil ou mesmo pateta é um dos inúmeros méritos da autora.
Aqui, é importante esclarecer que o outro livro publicado em vida por Lee, Vá, Coloque um Vigia (2015), não é uma sequência de O Sol é Para Todos (como, aliás, foi divulgado à época do lançamento pelas editoras norte-americana e britânica), mas uma versão anterior daquele mesmo romance que a consagrou.
Ela terminou de escrever esse tratamento em 1957 e o editor Tay Hohoff achou que havia excelentes elementos ali, mas o livro parecia uma série de anedotas, não uma narrativa pronta e acabada. Animada pelas discussões com o editor, Lee repensou e rescreveu tudo, alcançando organicidade e fazendo alterações substanciais (em Vigia, por exemplo, Atticus é um segregacionista), além de, é claro, conceber o tom da obra final.
Como é ‘A Terra da Doce Eternidade’
É importante ressaltar isso porque alguns dos contos publicados em A Terra da Doce Eternidade, escritos entre o final dos anos 1940 e o início da década seguinte, logo após a mudança da autora para Nova York (depois de abandonar o curso de Direito), apresentam elementos que seriam desenvolvidos em O Sol é Para Todos. Binóculo e o conto que dá título à coletânea antecipam, por exemplo, o segundo e o sétimo capítulos do romance. Em O Suprassumo, narrativa carregada de ironia (note a figura do “negro ianque”), Lee ainda está processando seus sentimentos para com a família e a terra natal, como, aliás, ainda fazia na versão que eventualmente publicaram como Vá, Coloque um Vigia.
Fugindo do universo e da “arqueologia” de seu grande romance, há três contos muito bem humorados que se passam em Nova York: Um Quarto Cheio de Ração (em que também observamos uma transição do interior para a metrópole, passando pela vida universitária), Os Que Assistem e os Que São Assistidos (que, ao comentar os hábitos dos espectadores de cinema, talvez pudesse integrar a segunda parte da coletânea) e Isso é Showbusiness? (em que a narradora caipira se vê trabalhando em algo que não entende e encarando tudo com uma espirituosidade hilariante).
Dentre os textos de não ficção, destacamos Natal para Mim (em que o gesto generoso de um casal de amigos viabiliza sua dedicação à escrita), Gregory Peck (a visita aos sets da adaptação cinematográfica de O Sol é Para Todos), Truman Capote (de quem Lee foi amiga desde a infância) e o já citado Romance e Grandes Aventuras (uma palestra sobre o historiador sulista Albert James Pickett).
Cena da adaptação de ‘O Sol é Para Todos’ para o cinema; o filme rendeu o Oscar de melhor roteiro adaptado em 1963 para Horton Foote Foto: Universal Pictures
Em geral, volumes que reúnem escritos assim dispersos costumam ser irregulares, e A Terra da Doce Eternidade não foge à regra. No entanto, graças à organização perspicaz — sobretudo dos textos ficcionais — e ao quase ineditismo de certos textos, o livro pode interessar não só aos fãs de Harper Lee, mas a qualquer pessoa afeita à boa prosa, aqui disposta e apresentada em recipiente nada descartável.
A Terra da Doce Eternidade
‘A Terra da Doce Eternidade’ terá lançamento mundial nesta terça, 21 Foto: Reprodução de capa/José Olympio
- Autora: Harper Lee
- Tradução: Suzana Vargas
- Editora: José Olympio (160 págs.; R$ 69,90)