O jornalista José Pedro Castanheira alerta, no livro “Histórias da PIDE”, que reúne reportagens sobre a polícia política, para o crescente saudosismo do Estado Novo, recordando a violência deste órgão repressivo que fez milhares de vítimas e 29.510 presos políticos.

“Histórias da PIDE. Quando Salazar mandava” é o título do primeiro volume de um conjunto de reportagens sobre o funcionamento e a dimensão repressiva da polícia política da ditadura do Estado Novo, que o jornalista José Pedro Castanheira fez para o semanário Expresso, fruto de anos de investigação junto dos arquivos da PIDE.

Publicado pela Tinta-da-China, este primeiro volume, que chega esta quinta-feira às livrarias, reúne seis histórias que considera “as mais significativas, tanto em termos jornalísticos como historiográficos”.

As narrativas cobrem o período em que António de Oliveira Salazar dirigiu o país, entre 1933 e 1968, quando criou e consolidou a PIDE, “um dos pilares e um dos guardiões da fortaleza que construiu e na qual mandou”.

Num texto de apresentação, José Pedro Castanheira conta que teve o primeiro contacto direto com os arquivos da polícia política durante a investigação para o livro “Quem Mandou Matar Amílcar Cabral?”.

A partir daí, mergulhou num “repositório ilimitado de histórias fantásticas, quase todas elas trágicas”, que, segundo o próprio, “ilustram muito bem o sistema de governo que dominou Portugal durante meio século, mas que agora muitos insistem em ignorar ou branquear”.

Entre os episódios incluídos em “Histórias da PIDE” está a detenção de Calouste Gulbenkian, em 1942, quando o milionário arménio, refugiado da guerra e com estatuto diplomático do Irão, foi preso pela PVDE —  antecessora da PIDE —  após se recusar a libertar quartos do hotel onde estava hospedado para uma comitiva do regime franquista.

O episódio, apagado dos arquivos oficiais, é recuperado pelo jornalista como exemplo da “personalidade provinciana, desconfiada e canhestra de quem dirigiu este país durante 36 anos”.

Outro caso abordado é o da chantagem sobre o antigo Presidente da República Craveiro Lopes, vigiado e pressionado pela PIDE após se afastar de Salazar e apoiar um golpe destinado a derrubá-lo.

O processo incluiu vigilâncias, fotografias e cartas anónimas relacionadas com uma relação amorosa do antigo chefe de Estado com uma mulher casada, 26 anos mais nova. “Em pânico, Craveiro Lopes remeteu-se a um completo e angustiado silêncio e cedo viria a ser vítima de um fulminante ataque cardíaco”.

O terceiro capítulo recorda o encontro do autor com António Rosa Casaco, o chefe da brigada que assassinou Humberto Delgado em 1965. A entrevista, realizada em Espanha em 1998, foi uma das mais mediáticas da carreira de Castanheira e levou, dois meses depois, à detenção do antigo inspetor da PIDE à entrada de um banco em Madrid, depois de já ter sido localizado a viver naquele país sob falsa identidade.

Segue-se o caso de D. Eurico Dias Nogueira, bispo vigiado pela polícia política após apoiar o gesto do bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, que em 1958 escrevera a Salazar criticando o regime —  uma carta que lhe custaria dez anos de exílio.

A PIDE manteve sob “atenta vigilância policial” o então jovem padre Eurico Dias Nogueira durante anos, considerando-o uma potencial ameaça.

Em “O crime do Pinhal de Belas”, o autor relata a execução, em 1965, de um informador da PIDE por militantes da Frente de Ação Popular (FAP), movimento criado em Paris por dissidentes comunistas, adepto da luta armada e clandestino em Portugal.

O caso, classificado por José Pedro Castanheira como um “combate desigual, sem tréguas e tantas vezes sem regras”, reflete o clima de clandestinidade e violência que marcou os últimos anos do regime.

O último capítulo — “A inesperada visita do poeta soviético Ievtuchenko a Fátima” —  mostra a “paranoia” anticomunista da ditadura.

A visita a Portugal do poeta soviético Evgueni Ievtuchenko, para a ação de promoção de um primeiro livro do autor em Portugal (“Autobiografia Prematura”, D. Quixote), desencadeou uma operação de vigilância da PIDE que incluiu escutas telefónicas, seguimentos, fotografias e interrogatórios à editora Snu Abecassis.

Ao longo destas histórias, Castanheira descreve a PIDE como “um Estado dentro do Estado”, um aparelho que acumulava poder e autonomia operacionais, capaz de atuar com violência e impunidade. “A violência fazia parte do núcleo essencial da cultura da PIDE”, escreve, destacando a tortura como a sua “arma preferida”, instrumento de chantagem, repressão e controlo político.

O jornalista recorda que, com o agravamento da guerra colonial, a PIDE passou também a atuar fora das fronteiras, em países vizinhos de Angola, Moçambique e Guiné, assumindo-se como uma verdadeira polícia internacional.

“O seu vastíssimo poder” era “potencialmente ilimitado”, afirma o jornalista, sublinhando que a eficiência burocrática da instituição era uma das chaves da sua longevidade e eficácia repressiva.

No final do prefácio, José Pedro Castanheira deixa um aviso: “Tem vindo a emergir entre nós um até agora escondido e envergonhado saudosismo dos bons velhos tempos, em que havia ordem, respeito, comando, disciplina, segurança, obediência”.

O autor considera preocupante a forma como esse discurso se manifesta “na política, nos media, na própria academia e que as redes sociais amplificam”, levando ao branqueamento e até mesmo a “uma tentativa de adulteração ou falsificação da História”.

O jornalista lembra que a PIDE foi o principal guardião da mais longa ditadura pessoal do século XX e “inimigo jurado da liberdade”, que ao longo dos seus 41 anos de existência fez dezenas de milhares de vitimas, e que “só presos políticos nominais foram 29.510, o que dava para encher um estádio de futebol de média dimensão”.

José Pedro Castanheira espera que este livro seja “mais um contributo para preservar a memória desses tempos, para que não se voltem a repetir, e para que se conheça melhor a história da repressão, da resistência à ditadura e da conquista da liberdade”.

O segundo volume de “Histórias da PIDE” reunirá reportagens sobre episódios que se verificaram já depois do AVC que, em setembro de 1968, ditou a substituição de Salazar por Marcello Caetano ao leme do Estado Novo, adianta o autor.

Esse livro abordará a violência extrema da PIDE, dirigida em particular a anarcossindicalistas e militantes do PCP, que se viria a refinar ainda mais nas antigas colónias sobre os guerrilheiros e outros membros dos movimentos de libertação.

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