Lavar cá ou lá? É a grande questão. Mas não é, nem de longe, a única.
A lã portuguesa, fruto de gerações de pastoreio e de um poderio industrial que remonta à época de Marquês de Pombal, enfrenta hoje um paradoxo estratégico: pode ser exportada em bruto para ser lavada na China — enquanto o único lavadouro industrial do país está parado por falta de ligação a uma ETAR. Falamos de poucos metros de tubo, e de alguns anos de inércia, de ditos e não ditos.
Mas olhemos a linha de tempo desta contradição institucionalizada: em outubro de 2024, Portugal celebrou um protocolo com a China que reabriu as exportações de lã não lavada, após cinco anos de suspensão. A Direção-Geral de Alimentação e Veterinária e a Administração Geral das Alfândegas da China rubricaram o acordo, permitindo retomar um canal comercial que muitos produtores viam como vital e aplaudiram no seu anúncio em Março de 2025.
Mas vital para quê?
Sim, evita o desperdício imediato. Mas à custa de quê?
De exportar matéria-prima sem qualquer transformação local?! Desculpem-me mas isso é perpetuar um modelo que tira valor ao país e reforça a dependência externa. Um modelo que contradiz todos os princípios da sustentabilidade e economia circular.
E pior: fá-lo mesmo quando existe capacidade instalada para lavar e transformar a lã cá dentro. Só que essa capacidade está parada. Literalmente. Porque o lavadouro da Guarda, o único em funcionamento no país (que eu sem saber que o era passei inúmeras vezes a pé à sua frente nos meus tempos de estudante), não pode operar por falta de ligação à rede de saneamento. E não é por falta de avisos e pedidos: mais de 20 entidades e grandes empresas do setor já exigiram a resolução imediata do problema a diversas entidades, muito antes da recente petição publica que já tem mais de 5200 assinaturas.
Esta realidade seria aceitável se não existisse, em Portugal, uma indústria têxtil laneira viva, capaz, resiliente e competitiva, que resistiu e merecer ser defendida. Empresas centenárias da zona da covilhã e da Serra da Estrela que produzem artigos de e com lã, alem de terem resistido a uma desertificação que as asfixiou, reinventaram-se com design, inovação e sustentabilidade. Produzem ainda com alguma lã nacional, rastreabilidade certificada e impacto ambiental reduzido. Colocam os seus produtos em mercados exigentes. Mantêm emprego qualificado. Transformaram fábricas antigas em hubs de valor e identidade.
E agora vêem-se confrontadas com a impossibilidade de ter lã lavada em Portugal.
O elo inicial da cadeia está em risco — e com ele, tudo o que vem depois.
Mas o impacto vai além da indústria têxtil. É a perda de todo um ecosistema que vai da lã ao leite. É toda uma alma de um território.
Sem valorização da lã, os pastores da Serra da Estrela, os verdadeiros guardiões da montanha, ficam sem alternativa viável para escoar a produção.
A raça Bordaleira da Serra da Estrela, essencial ao queijo DOP, viu o seu número cair mais de 90% desde os anos 80.
Sem animais no terreno, perde-se transumância, desaparece o pastoreio, e cresce o combustível vegetal que alimenta incêndios.
Perde-se, aos poucos, a alma da Serra da Estrela — uma alma feita de lã, leite e bravura.
E tudo isto porque a lã virou problema. Porque é mais fácil exportar em bruto do que investir em fileiras de valor. Porque se opta por discursos de transição ecológica, mas que se bloqueia a regeneração de cadeias produtivas locais.
E depois?
Depois, será o queijo.
Depois, mais desertificação.
Depois, será a paisagem sem vida.
Depois, virá a Serra sem neve — porque, sim, até o clima muda mais depressa do que as decisões públicas que nos afetam.
Há muita coisa em jogo. E parece que não se quer ver. Porque perdemos valor económico, porque exportamos matéria-prima e importamos produtos transformados fabricados no oriente com lã Potuguesa.
Perdemos valor ambiental, porque promovemos transporte internacional em vez de cadeias de abastecimento curtas.
Perdemos valor cultural, porque se desmantela o elo que liga o campo à indústria.
E, acima de tudo, perdemos valor estratégico: porque deixamos de acreditar no que é nosso. E Como se costuma dizer com amargura, mas com alguma verdade — santos da casa não fazem milagres.
O que é preciso? Não é pedir subsídios. É pedir coerência e visão estratégica.
Ligar o único lavadouro de lãs da Península Ibérica à ETAR não é apenas um ato técnico. É um sinal político e económico de quem quer futuro com valor para a lã portuguesa.
É garantir que um produto com identidade, rastreabilidade e reconhecimento internacional continue a ser processado em Portugal.
É respeitar quem ficou a guardar a serra quando tantos partiram.
É dar valor a quem cria, transforma e inova.
Portugal tem tudo: o saber, a indústria, os criadores, o design, a marca, o nome.
O que falta, muitas vezes, é só mesmo um tubo.