Narrar A Eleição Mais Louca de Sempre, o novo Podcast Plus do Observador, foi uma autêntica viagem à infância para Gonçalo Waddington. Em 1986, ano das primeiras e únicas eleições presidenciais decididas a duas voltas, tinha nove anos e lembra-se perfeitamente das muitas discussões familiares sobre a corrida entre Mário Soares e Diogo Freitas do Amaral.
“Os meus pais, avós paternos e maternos vieram de Moçambique. Eram todos anti-Soares, exceto o meu avô materno, que tinha bochechas à Soares e tinha um grande apreço pela luta antifascista. Acabou ele a rir”, recorda ao Observador. “Foi um fenómeno popular” e, por isso, o ator ainda tinha presentes alguns detalhes da história. Foi preciso depois afinar o tom da narração. “Tive acesso ao texto completo e li-o uma vez. E depois há o lado técnico, que é vir disponível, que é o que tento fazer em todos os meus trabalhos.”
É a primeira vez que narra um podcast, mas a sua voz é reconhecível e reconhecida depois de várias décadas de provas dadas no cinema, teatro e televisão. Ironicamente, foi precisamente por causa dela, da voz, que foi recusado na Escola Profissional de Teatro de Cascais, aos 16 anos.
“Estavam três pessoas na audição. Falámos um bocadinho, mandaram-me ler um texto e a Rosarinho, que era professora de voz, vem ter comigo e diz: ‘Você não tem voz, não pode ser ator. Vá para cenografia’. Eu respondi: ‘Mas isto é uma escola, vou aprender, não é’? Não serviu de muito, ela foi peremptória”, conta Gonçalo Waddington.
Anos mais tarde, os caminhos de ambos voltariam a cruzar-se quando o ator participou numa peça dos Artistas Unidos sobre Adolf Hitler. “Eu tinha um monólogo, uma coisa enorme de dez páginas. No final de uma sessão, veio a Rosarinho ter comigo e disse: ‘Você tem uma voz incrível’. Não se lembrava de mim. Ainda pensei que me fosse dizer que se tinha enganado, mas não”, recorda. O ator também não viu necessidade de lhe refrescar a memória. “Foi engraçado”, relativiza.
Antes de contarmos a história da passagem pela Escola Profissional de Teatro de Cascais, que aconteceu mesmo, e de recuarmos às origens, é preciso deixar uma correção, feita pelo próprio, que admite ter passado 48 anos a pronunciar mal o próprio apelido: Waddington lê-se “Wéddington” ou, pelo menos, foi o que lhe garantiram recentemente. “Disseram-me: ‘Atenção, que isto diz-se assim ‘Wéddington’, como a estação de Paddington’. Entretanto pode vir um escocês dizer que não é assim, não sei.”
[o trailer de “A Eleição Mais Louca de Sempre”:]
Gonçalo Filipe Waddington Marques de Oliveira nasceu em Lisboa a 25 de setembro de 1977, mas mudou-se para a Venezuela com um ano e meio. Os pais trabalhavam em construções de barragens, especializados em pinturas anticorrosivas, e nessa fase estavam envolvidos no projeto da barragem de Guri. Teve uma infância livre com a rotina de vestir o fato de banho sempre que chegava da escola. No condomínio, construído para os trabalhadores da barragem, viviam portugueses, brasileiros, americanos e venezuelanos e os miúdos com idades semelhantes juntavam-se todos os dias para brincar.
“Uma vez vimos um buraco na vedação, atravessámos e demorámos muito tempo, os nossos pais tiveram de ir à nossa procura. Estávamos num rio a tentar apanhar crocodilos pequenos. Não tínhamos mesmo noção de que ali haveria coisas maiores e perigosas.”
Regressou a Lisboa com seis anos e a realidade passou a ser “sombria”. A família instalou-se num apartamento na Portela de Sacavém — um de três que o avô paterno tinha comprado antes de regressar de Moçambique. “Via-se do aeroporto. Ele chegou de Moçambique e pensou: ‘Aquilo ali é novo, vou comprar’. Numa altura de instabilidade, antes da Revolução, foi a forma de salvaguardar algum dinheiro.”
Foi esse o único motivo pelo qual foi parar à Portela, e não a outro sítio qualquer. Tudo foi um choque para ele, sobretudo a escola. “Vinha de uma escola chamada Colégio Positivo, onde mesmo o que era mau era visto com uma perspetiva positiva. Havia teatro e concertos. De repente, chego cá e calha-me uma professora salazarista que apontava para a janela e dizia: ‘Estão a ver aquela ponte? Chamam-lhe 25 de Abril, mas é a ponte Doutor Oliveira Salazar, que construíram num dia’.”
Quando chegou, o irmão entrou para o quarto ano, o que lhe garantiu, diz Gonçalo, “ter levado porrada [reguadas os professores] só durante um ano”. “Tive quatro anos de primária daquilo, foi horrível.”
A irmã, dez anos mais nova do que Gonçalo, ainda chegou a viver naquele mesmo bairro, mas pouco depois a família mudou-se para o Alto da Barra, em Oeiras, e mais tarde para Carcavelos — a mãe há muito que queria estar perto do mar.
Passou a adolescência enfiado nas salas de cinema e era sócio de todos os clubes de vídeo da zona. “Tinha dívidas de coisas estúpidas, esquecia-me de devolver os filmes e, depois, como não tinha dinheiro para pagar as multas e tinha medo de pedir aos meus pais, não voltava e inscrevia-me noutro.”
Tinha uma banda com o irmão, na qual tocava bateria, mas garante que não era muito talentoso. “Toco muito pouco e não sou cantor, apesar de conseguir cantar se tiver um coro ou for devidamente ensaiado.”
O pai estava ligado à música e pintava e isso influenciou-o na escolha da área de arte e design no 9.º ano. Porém, também “pintava zero”. No liceu de Oeiras, onde estudava, escolheu então a área de jornalismo, porque gostava de Letras. Estava no 11.º ano, uma fase que descreve como “não muito feliz”, quando viu um amigo com uma T-shirt da Escola Profissional de Teatro de Cascais. Perguntou o que era e, nesse dia, chegou a casa e disse aos pais que era para lá que queria ir.
Desistiu da escola e foi trabalhar o resto do ano letivo (era fim de abril). “Trabalhei no Cascaishopping numa loja de decoração que se chamava Michele K. Os donos eram uma holandesa e um português muito porreiros.”
Depois da nega na audição para o curso de representação, acabou por aceitar ingressar em cenografia na Escola Profissional de Teatro de Cascais. No entanto, recorda, foi graças a outra aluna, Flor, que não desistiu simplesmente da ideia.
“Conheci-a no dia em que fui fazer a audição. Estava lá na vida dela, sempre a cantar, mas desejou-me boa sorte antes de entrar. No final, eu estava lá sentado numas escadas, ela perguntou-me como correu e eu disse que não tinha ficado, que me tinham dito para ir para cenografia.”
Flor incentivou-o a aceitar. “Disse-me que no primeiro ano davam interpretação, cenografa e luminotecnia e que, se eu mostrasse que era bom, me deixariam trocar para interpretação no segundo ano. De facto, tenho de agradecer à Flor porque, se não me tivesse cruzado com ela, teria desistido. Não sei o que é feito dela, não sei se terá saído da área.”
No segundo ano, conseguiu apresentar alguns trabalhos ao encenador Carlos Avilez e deixaram-no mudar para o curso de representação. A primeira peça que fez, Portugal, Anos 40 (1996), foi encenada por Avilez, que Waddington sempre admirou. Porém, havia incompatibilidades com outros professores e esse foi um dos motivos para ter saído da escola sem terminar o curso. Outro foi fruto do que descobriu na antiga FIL, numa feira dedicada ao ensino, onde muitas escolas tinham bancas para fornecer informações. Gonçalo foi destacado para distribuir flyers e teve a perceção de algo que talvez tenha determinado o rumo da sua carreira. “Dois atores que eu conhecia, que trabalhavam na Cornucópia e noutra companhia, vieram ter comigo e disseram: ‘Ouve lá, o que é que se passa na vossa escola que, cada vez que fazemos um pedido para virem atores às audições, nunca mandam ninguém’? Já tinha havido um filme do Leonardo Vieira, chamado A Sombra dos Abutres, em que só um dos atores da escola foi fazer o casting. Havia preferidos lá dentro naquela altura e viemos depois a perceber que muitas companhias ou produtoras de cinema mandavam para lá pedidos e eles travavam. Quando saí, lembro-me de me terem dito que eu nunca ia trabalhar na área. Mas, se era aquele género, não queria.”