ENTREVISTA || Face à incerteza lançada por Donald Trump, “era necessário que a União Europeia pudesse gerar certezas”, e foi por isso que fechou o acordo que prevê tarifas de 15% sobre a maioria dos produtos que exporta para os EUA. Para Manuel Caldeira Cabral, antigo ministro da Economia, Bruxelas teve “pragmatismo” a lidar com “o bully americano”, mas também houve “alguma capitulação”, nomeadamente no que toca à compra de armamento aos americanos, dado o quão “determinante” continua a ser o apoio dos EUA à Ucrânia

É preciso esperar para conhecer todos os detalhes do acordo escrito que a administração Trump e a comissão Von der Leyen anunciaram no início da semana. Por agora, a guerra comercial parece ter acabado e as tarifas de 15% que deveriam ter entrado em vigor na sexta-feira foram adiadas para a próxima semana.

Contas feitas, defende Caldeira Cabral, em entrevista à CNN Portugal, este acordo é só mais um exemplo do comportamento “extremamente destrutivo e negativo para o mundo ocidental”, que “em poucos meses” escancarou as portas do mundo inteiro a Pequim. “Se os EUA saem do jogo, perdem por falta de comparência e o que isto vai fazer é facilitar a vida à China.”

Falando deste acordo que acaba de ser alcançado – foi pragmatismo ou capitulação da União Europeia?

Estranhamente, é um pouco das duas coisas. Por um lado, pragmatismo de uma União Europeia (UE) que exporta muito mais bens do que importa aos EUA e que tem na exportação de bens uma parte importante da sua economia, incluindo economias como a alemã, que são fortes exportadoras e que têm no mercado americano o seu principal mercado. Nesse aspeto, era necessário que, face à incerteza lançada por Trump, pudesse haver alguma capacidade da UE para gerar certezas. E chegámos a um acordo que não é bom, mas que é certo que pode ser melhor do que acordo nenhum, dada a incerteza que isso gera no investimento e em tudo o resto. 

Da parte de Trump estamos diante de um pragmatismo pouco pragmático e economicamente desastroso, não apenas com a UE mas com todo o mundo. Não podemos lidar com o bully americano com este nível de incerteza e o pragmatismo da UE vem permitir alguma estabilidade através de um acordo que é um mau acordo para os dois lados.

Não são só os europeus que perdem com este acordo?

Claro. A ideia de que os EUA ganham e que a UE perde não é verdade, ambos perdem com as tarifas e principalmente com uma subida tão forte das tarifas. Lembro que a tarifa média entre EUA e UE era de cerca de 2%, 2,5% e só havia um conjunto pequeno de produtos cujas tarifas tinham subido para 10%. Com Trump agora vai para os 15% e depois teremos de ver os pormenores do acordo, nomeadamente se no setor automóvel e no aço se mantêm as tarifas de 25%. Vamos ter esta tarifa geral de 15%, mas que eventualmente poderá ser ainda maior, e isso tem um impacto grande no comércio que é claramente negativo. Mas, no fundo, tivemos pragmatismo no sentido em que, entre o mau e o péssimo, ficou-se no mau, no muito mau, mas pelo menos evitou-se o péssimo.

Para Caldeira Cabral, que foi ministro da Economia de Portugal entre 2015 e 2018, a UE teve “pragmatismo no sentido em que, entre o mau e o péssimo, ficou-se no mau”; o acordo alcançado é “muito mau, mas pelo menos evitou-se o péssimo” foto: Zoltan Balogh/MTI via AP

E onde vê o reverso da medalha, a dita capitulação da União Europeia?

Houve alguma capitulação mais na parte das compras militares, e essa capitulação tem a ver com a vulnerabilidade na área da Defesa, em que a UE precisa dos EUA. Há aqui uma certa capitulação no sentido de aceitar um acordo de compra de armamento em troca de manutenção de uma promessa dos EUA.

Fala da Ucrânia?

Sim, quando na verdade, no âmbito da NATO, já existe um acordo entre todos os Estados-membros sobre defesa mútua, mas os EUA puseram a coisa nos termos de “só mantemos [o apoio à Ucrânia] se nos comprarem mais armas”. Isto, aliás, é também um pouco estranho, porque dentro do acordo da NATO, a Europa tem sempre feito grande parte das suas compras de armamento aos EUA, os EUA já beneficiavam muito com isso.

No que toca à Ucrânia, os EUA tiveram uma viragem de 180 graus. Inicialmente pareciam estar a alinhar mais com Putin com vista a um acordo de paz que previa uma capitulação da Ucrânia às condições da Rússia, incluindo a cedência de território. Trump foi ingénuo, diz-se um grande negociador que impõe as suas condições, mas basicamente Putin não fez o que ele queria, e a paz que Trump disse que acontecia em 24 horas não aconteceu, nem está na perspetiva de acontecer. E nesse sentido a Europa conseguiu assegurar uma posição em que os EUA estão outra vez abertos a fornecer armamento à Ucrânia, o que muda um pouco os termos deste conflito. Ainda que, sendo Trump, isto só dura enquanto durar.

Não terá sido uma coincidência que a postura de Trump face à Rússia e à Ucrânia tenha aparentemente mudado horas depois de este acordo comercial com a UE ter sido anunciado…

Não. Temos de ver se isto fará parte do acordo escrito ou não, mas o facto é que, com os EUA do lado da Ucrânia, Putin estará a manter uma guerra em que dificilmente poderá avançar muito. Mesmo que consiga manter-se [nos territórios ocupados] dificilmente poderá ter a supremacia militar que lhe permita conquistar toda a Ucrânia. Com os EUA na posição em que estavam inicialmente com Trump, penso que Putin tinha a esperança de que os EUA abandonassem a Ucrânia – o que significaria que, mesmo com algum apoio europeu, a Ucrânia não poderia sustentar a sua posição por muito tempo.

Isto é um aspeto importante, a defesa da Ucrânia, que é a defesa de um país que foi invadido por outro para conquista de território, uma coisa que, de facto, não acontecia nem era tolerado desde a II Guerra Mundial, porque tolerá-lo abriria a porta a uma enorme instabilidade, a um regresso à lógica preponderante do século XIX, sob a qual os países poderosos invadiam e anexavam território dos vizinhos mais pequenos apenas porque tinham força para isso. No caso da Europa em concreto, a Ucrânia ser militarmente derrotada pela Rússia significaria que a fronteira direta da UE passaria a ser a próxima frente de batalha, o próximo território que Putin poderia resolver conquistar. O apoio dos EUA é, de facto, determinante e é nesse sentido que houve capitulação da UE com este acordo – porque a UE não tem alternativa.

Através disto, Trump tem conseguido reescrever as regras do comércio mundial e da economia global. Num editorial esta semana, o Financial Times dizia que o Presidente americano “inaugurou uma nova era em que o pânico, e não a política, é que dirige o sistema de comércio global” e que esta capitulação da UE – sendo a UE o maior mercado mundial de consumidores – “deu aval à nova ordem mundial implementada por Trump”. Partilha desta visão?

Concordo que, de facto, perante a instabilidade de Trump, a UE aceitou um mau acordo, porque um mau acordo é melhor do que acordo nenhum. Agora o que não aceito é que se diga que é mau só para a UE, como já disse também o é para os EUA. Os americanos vão ser tão prejudicados e, nalguns casos, até mais prejudicados por este mau acordo do que os europeus. Os consumidores americanos vão passar a ter produtos mais caros e vão ter de consumir produtos nacionais de pior qualidade face a produtos europeus de melhor qualidade.

E os EUA não estão apenas a fazer estes maus acordos com a Europa, mas também com o México, o Canadá e outros países do mundo e isso vai prejudicar os cidadãos americanos. É mau para todos. O comércio quando é bom é bom para todos, mas quando é mau é mau para todos. E quando é que é bom? Quando as trocas são voluntárias. Em teoria, nós só vamos comprar aos EUA coisas que achamos que os EUA produzem melhor e eles só compram à UE produtos que tenham mais qualidade e/ou melhor preço. Nesse sentido, vai ser uma perda para todos esses consumidores.

Em termos geoestratégicos, os EUA sob Donald Trump estão a ter uma política que, internamente, divide, e que, externamente, os separa dos seus aliados, pondo em causa as relações com o Canadá, o México e a UE, enfraquecendo o mundo ocidental, que era um mundo onde era a América que liderava. A América claramente liderava o mundo ocidental e poderia ter continuado a liderar, sendo que o peso desse mundo ocidental é muito maior do que o peso dos EUA apenas, por oposição ao peso que a China tem hoje no mundo.

“A China não é obrigatoriamente um país inimigo, mas é um rival económico e agora tem a oportunidade de dominar porque os EUA estão a sair de cena ou a impor tarifas aos aliados ou a ser completamente instáveis” foto: AP

A questão é que, para além de criar uma enorme ineficiência e comprometer o crescimento económico e a riqueza em todo este espaço ocidental, esta política de desintegração em relação ao mercado único europeu e à NAFTA também enfraquece o mundo ocidental face à China. E faz também com que outros países do mundo, como é o caso das nações da América Latina e de África – como quando decidiu acabar com o USAID – que até hoje contavam com os EUA, passem a contar mais com a China. O que Trump fez nestes poucos meses foi extremamente destrutivo e negativo para o mundo ocidental, para a confiança dos aliados. Trump firmou uma perda de valor para o mundo ocidental e fê-lo numa lógica que ele próprio defende de rivalidade com a China, quando na verdade está a fazer o maior favor estratégico à China.

Se os EUA saem do jogo, perdem por falta de comparência e o que isto vai fazer é facilitar a vida à China. A China não é obrigatoriamente um país inimigo, mas é um rival em termos económicos e agora tem a oportunidade de dominar porque os EUA estão a sair de cena ou a impor tarifas aos aliados ou a ser completamente instáveis.

Há quem argumente que, apesar de tudo, estamos diante de uma boa jogada da UE. Numa análise ao acordo anunciado, a CNN Internacional dizia no início da semana que o bloco europeu está a jogar a longo prazo e que é mais subtil do que a administração Trump julga. Concorda?

Sim. E penso que, enquanto faz este acordo, a UE deve ao mesmo tempo manter os esforços para ter uma indústria de defesa mais autónoma. Há quem olhe para este acordo como comprometendo um pouco esta ideia de autonomia na defesa europeia, porque continua a depender dos EUA. Mas ter um acordo de compra de armamento não tem de comprometer a ideia de a UE desenvolver a sua própria indústria de armamento, que se torne autónoma e independente dos EUA. É aí que entram as nuances deste acordo. Mesmo comprando armas aos EUA para ajudar a Ucrânia, devemos continuar os esforços para desenvolver a nossa própria capacidade industrial militar e a nossa capacidade de inovação e com isso começar a ter uma maior autonomia nas capacidades de defesa.

E depois há outra coisa. Repare no que é que vemos hoje na guerra da Ucrânia, por exemplo. Vemos a Rússia a usar drones do Irão, a Ucrânia com alguns drones comprados à Turquia… Em algumas áreas concretas, os Estados Unidos já não são obrigatoriamente o melhor fornecedor de armamento hoje em dia. E o que a UE tem de garantir é que, daqui a 10 ou 15 anos, as pessoas venham comprar equipamento militar europeu porque é o melhor do mundo. Já temos muitas empresas capazes de fazer os melhores automóveis do mundo, por exemplo, e temos melhores visões do mundo, por exemplo comerciais, pelo que poderemos facilmente, se soubermos liderar este processo de uma forma interessante, conseguir ter esta capacidade de liderança em muitas áreas.

O que é preciso fazer para alcançar essa posição de liderança?

Temos de fazer duas coisas: investir na indústria do armamento, mas em primeiro lugar investir na inovação, e uma parte dela em áreas ligadas à defesa. Isso é de facto algo que é importante, porque é muito mais pela inovação que a Europa pode liderar na área da defesa e também nas chamadas áreas de duplo uso, que servem a defesa e outros setores, mais do que pensar que é só apoiando ou comprando aos outros.

Há uma área muito importante que é muitas vezes esquecida e na qual a Europa e Portugal também já estão a ser atacados pela Rússia. A Ucrânia é atacada por terra, por ar e por mar, e Portugal não está a ser atacado por terra, por ar ou por mar, mas está a ser atacado no ciberespaço. A cibersegurança e a capacidade de defesa nessa área é hoje crucial, até porque a cibersegurança não é só virtual, é a segurança de todos os equipamentos críticos e de áreas críticas como a defesa. Se falharmos na cibersegurança, essas áreas são comprometidas e a Europa tem de dar muito mais atenção a isso, a Europa e cada Estado-membro. E em todas as outras áreas é igualmente importante que haja um reforço muito forte da inovação, a capacidade de criar novas soluções, que é algo que tem de ser feito com investigação, com investimento direto na indústria, com investimento em startups que já têm soluções completamente novas…

“Já estamos a ver agora na Ucrânia drones que custam menos de mil euros a produzir a destruir equipamentos que custam centenas de milhões” foto: MNE russo via AP

A verdade é que a guerra daqui a 10, 15 anos vai ser feita de uma forma completamente diferente e alguns dos equipamentos muito caros podem tornar-se totalmente obsoletos em poucos anos. Pode haver equipamentos fabricados em massa com capacidade mais versátil e em grande escala, que representem uma muito maior e mais forte capacidade de defesa. Aliás, já estamos a ver agora na Ucrânia drones que custam menos de mil euros a produzir a destruir equipamentos que custam centenas de milhões.

Os processos na UE tendem a ser mais longos e complexos do que nos EUA e, para além de potenciais obstáculos judiciais, será necessário que o Conselho e o Parlamento Europeu aprovem este acordo comercial. Vê alguma possibilidade de isto não avançar?

Não. O acordo avançará. O importante aqui são estas características estranhas que Trump trouxe ao mundo, em que faz acordos pelo Twitter, que agora se chama X. Os acordos comerciais sempre envolveram negociações longas, porque são muito complexos. Há produtos que são parcialmente fabricados num país e depois saem para outra fase de produção noutro país e depois voltam ao seu país de origem. E depois há sempre exceções para produtos de valor acrescentado nacional, produtos que são de categorias semelhantes, mas com ligeiras diferenças, componentes para fabrico de produtos finais…

A forma como os EUA e como Trump têm negociado os acordos é extremamente irresponsável, não só por esta questão do deteriorar das relações com países que têm sido aliados nas últimas décadas, mas também face à própria indústria americana. Um industrial americano que importa componentes para fabricar produtos de repente andou nestes últimos meses sem saber se vai ter uma tarifa de 10% ou de 25% ou de 15% e isso cria uma situação muito complicada.

Normalmente, os acordos feitos pela UE, por ser composta por muito países, envolvem sempre negociações mais longas, tem de se ver o detalhe de cada tarifa para cada produto, fazer a diferenciação, ver as regras técnicas… Donald Trump achou que se devia fazer negociações de comércio desta maneira bastante insólita, mas que tem a ver com a forma como todos os EUA estão a ser geridos neste momento.

Os europeus devem perceber de uma forma muito clara que eleger pessoas radicais e que se afirmam no poder de uma forma destrutiva – dizendo-se contra isto e contra aquilo, que não têm nenhum programa positivo através do qual querem fazer o bem para a sociedade – é uma ideia muito má e muito perigosa. O problema com estas pessoas, que é o que se está a ver com Trump, é que depois fazem o que disseram que iam fazer. E com Trump nada é pensado, daí anunciar uma coisa num dia, depois adiar por 90 dias e depois aplicar outra coisa completamente diferente. É navegação à vista em coisas que têm impacto nos mercados e nos investimentos, mas também na vida das pessoas. Demonstra uma enorme irresponsabilidade, mas é basicamente Donald Trump a ser Donald Trump.