Tar / stock.adobe.comImunizantes contra covid-19 atuam como moduladores do sistema imunológico, capazes de tornar os tumores mais sensíveis à imunoterapia.Tar / stock.adobe.com

As vacinas de RNA mensageiro (mRNA) contra a covid-19 podem ajudar a estimular o sistema imunológico a combater melhor o câncer e aumentar a sobrevida dos pacientes oncológicos. É o que aponta um estudo publicado na revista Nature e apresentado no Congresso Europeu de Oncologia, na Alemanha. 

Os cientistas envolvidos em pesquisas para desenvolver vacinas para tumores descobriram que o mRNA pode treinar o sistema imune para destrui-los, mesmo que o mRNA não esteja relacionado ao câncer. Assim, levantaram a hipótese de que as vacinas de mRNA contra covid, como da Pfizer/BioNTech e da Moderna, poderiam ter efeitos antitumorais.

Os norte-americanos e australianos analisaram os resultados clínicos de cerca de mil pacientes com melanoma e câncer de pulmão em estágio avançado, tratados com um tipo de imunoterapia chamado inibidores de ponto de controle imune – abordagem comum utilizada para treinar o sistema imune a atacar o câncer

Os inibidores (anti-PD-L1) bloqueiam uma proteína (PD-L1) produzida pelas células tumorais que desativa as células imunes – com isso, permitem que o sistema imunológico faça seu trabalho.

As vacinas de mRNA contra covid-19 atuam como moduladores do sistema imunológico, capazes de tornar os tumores mais sensíveis à imunoterapia, segundo o estudo dos pesquisadores vinculados ao MD Anderson Cancer Center e à Universidade da Flórida.

O efeito resultou em melhorias em pacientes que receberam a vacina dentro de cem dias após o início da imunoterapia: no caso do câncer de pulmão de células não pequenas, a sobrevida mediana aumentou de 20,6 meses para 37,3 meses, e a chance de o paciente estar vivo em três anos foi de 55,7% para os vacinados, enquanto para não vacinados foi 30,8%.

No melanoma metastático, a sobrevida mediana foi de 26,6 meses para pacientes que não receberam a vacina. O dado em relação aos vacinados não está disponível, pois não foi atingido ainda – segue em acompanhamento. A chance de estar vivo em três anos subiu para 67,6%, em comparação a 44,1% dos não vacinados.

— Os números são muito eloquentes, muito robustos — avalia Stephen Stefani, oncologista do grupo OncoClínicas RS.

Como funciona

O câncer cresce a partir do mecanismo utilizado pelas células tumorais para se camuflar do sistema imunológico, explica Stefani. Há alguns anos, identificou-se que desligar essa “capa de invisibilidade” da célula tumoral tem um efeito importante no prognóstico dos pacientes.

As vacinas de mRNA contra a covid-19 agem como um alarme, que aciona o sistema imunológico para superar a capacidade do câncer de desativar as células imunes, reconhecendo e matando as células tumorais, conforme os pesquisadores afirmam em um artigo publicado no The Conversation

Os imunizantes conseguem: 

  • ativar uma forte resposta de interferon 1, que desperta células imunes
  • amplificar a expressão da proteína PD-L1, criando um novo alvo 
  • otimizar a forma de desligar esse mecanismo, o que faz com que as imunoterapias mais modernas tenham resultados significativos

— Os pacientes vivem mais e melhor. Quando isso acontece em oncologia, nós temos de olhar com muita atenção, e festejar, porque nem todos os medicamentos que prometem respostas conseguem entregar esse tipo de desfecho clínico — ressalta Stefani.

A imunoterapia com inibidores de pontos de controle imune revolucionou o tratamento do câncer na última década ao proporcionar a cura para pacientes que antes eram considerados incuráveis, conforme os pesquisadores. Porém, é ineficaz em pacientes com tumores “frios”, que ainda conseguem escapar da detecção do sistema imune – o que parece mudar com a vacina.

“Nossas descobertas sugerem que as vacinas de mRNA podem fornecer exatamente o estímulo de que o sistema imune precisa para transformar esses tumores ‘frios’ em ‘quentes’. Se validada em nosso próximo ensaio clínico, nossa esperança é de que essa intervenção amplamente disponível e de baixo custo possa estender os benefícios da imunoterapia a milhões de pacientes”, afirmam no texto do The Conversation.

Próxima revolução no tratamento?

Para os autores do artigo, a descoberta pode ser a próxima revolução para tratar o câncer. Cientistas vêm se dedicando a criar vacinas de mRNA personalizadas para pacientes com câncer, algo ainda caro e difícil. 

As vacinas contra a covid-19, por outro lado, não precisam ser personalizadas, já estão disponíveis e podem ser administradas a qualquer momento durante o tratamento do paciente. Ao aproveitar a dose de uma nova maneira

A notícia é positiva pois também refuta a desconfiança de uma gama de pessoas de que as vacinas possam causar câncer, uma crença que não tem “fundamento nenhum”.

— Ao contrário, elas não só inauguraram uma plataforma de investigação que ajudou muito a oncologia, como têm uma chance grande daquele paciente, que tem o sistema imunológico treinado por ela, ter respostas melhores à imunoterapia contra doença oncológica. Então, isso nos dá não só entusiasmo, como tranquilidade para aquelas pessoas que ainda desconfiavam da segurança das vacinas. Foram seguras, salvaram vidas e continuam melhorando o resultado de outras doenças — salienta Stefani.

Empolgação com cautela

A descoberta merece atenção, mas alguns fatores ainda precisam ser melhor compreendidos. Por esse motivo, é preciso analisar os resultados com cautela, crítica e aguardar novas evidências, com acompanhamento a longo prazo. Mesmo assim, com os resultados e o nível da publicação, é seguro afirmar que estamos em uma direção promissora, diz Stefani.

A vacinação poderá ser um coadjuvante importante no combate à doença. Além disso, surgem possibilidades para otimizar tratamentos já disponíveis e tentar desviar os mecanismos de defesa das células tumorais.

— Existe uma possibilidade real de, primeiro, abrir portas para novas investigações, evidentemente, e de se passar a recomendar aos pacientes que façam vacinação, principalmente se vão ser submetidos à imunoterapia — reforça, destacando que isso já deve ocorrer por parte das sociedades médicas nos próximos meses.

O próximo passo dos pesquisadores é realizar um novo estudo clínico, prospectivo (que acompanha os pacientes a longo prazo) e randomizado, aprofundando-se além do dado clínico coletado de pacientes vacinados.

A estratégia de tratamento será testada em pacientes com câncer de pulmão. As pessoas que recebem um inibidor de ponto de controle imune serão selecionadas para receber ou não a vacina durante o tratamento. O estudo dirá se os imunizantes devem ser incluídos como parte do tratamento padrão para pacientes que recebem um inibidor de ponto de controle imune.