Como praticamente todos os miúdos, David Fernandes sempre gostou de desenhar, porém, ao contrário dos que vão crescendo e abandonado o hobby, nunca parou. Na escola seguiu para um curso de mecânica, mas eram os rabiscos que o mantinham sossegado durante as aulas. “Por ser distraído, esta era a forma que encontrava para ficar quieto. Costumo dizer que, embora não tenha seguido artes no secundário, foi por lá que aprendi a desenhar”, explica, em tom de brincadeira, à NiC.

Atualmente, com 40 anos, tem sido requisitado com frequência para a pintura de murais um pouco por toda a região de Coimbra. Nas paredes de Vila Nova de Poiares homenageou o músico português Phil Mendrix, passando, também, pelo Festival Catraia, na Praia da Tocha, durante dois anos seguidos — ali representou jogos tradicionais, como o do berlinde, “cada vez mais distantes das novas gerações”. A abertura da nova gelataria Doppo contou, igualmente, com a pintura de David, que deu vida ao desenho de uma artista polaca.

Nos seus trabalhos, “que refletem as suas emoções e pensamentos” procura, maioritariamente, incluir miúdos, idosos ou utentes com deficiência de instituições locais. Exemplo disso, é o mural dedicado às Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ), em Miranda do Corvo, que teve a participação de jovens italianos alojados temporariamente na vila.

Apesar do desejo de incluir os mais novos na sua arte, reservando um espaço para eles pintarem, a tarefa nem sempre é fácil. A situação mais complicada aconteceu este mês, no seu último trabalho em Serpins, Lousã, em que “um miúdo passou tinta mesmo em cima de um desenho que já tinha feito. Fiquei em pânico, mas não reagi dessa forma para não o assustar. Acabei por disfarçar, mas deu muito trabalho”, conta.

O sucesso como muralista poderia indicar uma vida dedicada a esta profissão, no entanto, o percurso de David começou bem longe das artes. Quando acabou o ensino secundário, trabalhou em restaurantes, cafés, na construção civil, como jardineiro e, durante mais tempo, num supermercado. A primeira oportunidade para pôr em prática o seu talento, aconteceu em 2007, numa festa na aldeia de onde é natural, em Chãs, Miranda do Corvo. “Queriam fazer uma coisa diferente e propuseram-me decorar as paredes. Nunca tinha feito graffiti, mas disse que sim. Fiz tudo em cima de papel, lona e plásticos, que podiam ser removidos, mas a técnica era a mesma”.

A partir desse momento, multiplicaram-se as encomendas para pinturas em quartos ou garagens, ainda que o retorno financeiro fosse quase nulo. “O dinheiro que ganhava era praticamente para os materiais, mas tive o grande privilégio de treinar na casa das pessoas”, declara.

Mesmo após tantos pedidos e o aperfeiçoamento das técnicas, a sua ocupação profissional continuava a ser outra. David só deixou o trabalho no supermercado em 2017, mas ainda não pensava dedicar-se à arte a tempo inteiro. “Estava numa fase em que não me sentia realizado e já pensava em sair do País para conhecer outras realidades.” A convite de um amigo, partiu com destino à América do Sul, com apenas uma mochila.

David Fernandes.

Brasil, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Brasil, Argentina e Peru foram os países por onde passou, ao longo de oito meses. Conheceu aldeias recônditas, onde a população “vivia com pouco e era feliz” e contactou com outros artistas, como fotógrafos, tatuadores, pintores ou artesãos. A viagem foi diferente daquilo que esperava. “Acabou não por ser um percurso turístico, mas antes de autodescoberta, com calma e paciência”, refere.

Nessa fase da vida, David entendeu que deveria dar continuidade à sua paixão. “Nessas regiões vi uma coisa que nunca tinha visto antes: que era possível viver da arte. Conheci muita gente a fazer disso vida, pessoas que tinham ido fazer o mesmo que eu e que vendiam os seus artigos para financiar a viagem ou que simplesmente tinham decidido estabelecer-se a longo prazo por lá e conseguiam ter rendimentos com o seu talento.”

No regresso a Portugal, em novembro de 2017, já estava decidido a dar esse passo — aos 32 anos estava, finalmente, pronto para abraçar a profissão. “Hoje vejo que as gerações mais novas, ainda na faixa dos 20, têm muito medo de serem velhos demais para mudar de vida. Isso não corresponde à realidade. Agora tenho 40 e sinto que se quisesse fazer qualquer outra coisa, podia fazê-lo tranquilamente”.

O primeiro trabalho aconteceu um mês após o retorno, numa loja localizada no Quebra Costas. Depois disso, o passa a palavra trouxe-lhe mais clientes, sobretudo com o apoio dos amigos, que divulgavam o seu trabalho junto de quem conheciam. “Tive logo a certeza de que daí para a frente só ia correr bem.”

Após vários estúdios (um deles chegou a ser na própria cozinha), o muralista estabeleceu-se, em fevereiro, na Lufapo, um edifício de uma antiga produtora de cerâmicas, que atualmente abriga outros artistas, de todas as áreas, e até startups.

David Fernandes tem tido êxito na pintura de murais pela região, contudo, não se considera um artista de “street art”. “Julgo que isso é mais urbano, eu venho de uma aldeia e, por isso, não me identifico dessa forma. Muralista talvez seja a designação mais correta”. Além disso, das suas mãos saem também pinturas em acrílico e retratos. Os trabalhos podem ser encomendados através das suas redes sociais, com valores sob orçamento.

Carregue na galeria para ver imagens de alguns dos trabalhos de David na região de Coimbra.