ANÁLISE || O partido do presidente argentino Javier Milei venceu as eleições legislativas intercalares com larga maioria. Esse resultado envolveu “uma chantagem” de Trump – e por isso: “Num primeiro mandato Trump foi um produto do sistema, no segundo mandato está a construir um sistema”
Antes de a Argentina ter ido às urnas, o presidente dos EUA mostrou-se disponível para auxiliar o país com um empréstimo de 17,2 mil milhões de euros. Mas com uma condição: “Donald Trump disse claramente que o resgate dos pesos argentinos que ele tinha feito só surtiria efeito se o partido de Milei vencesse. Em termos reais, não é a primeira vez que Donald Trump tenta interferir na política interna de outros Estados”, diz o politólogo José Filipe Pinto.
Perante a possibilidade de uma derrota de Milei face à oposição peronista (centro-esquerda) – que juntamente com os aliados garantiu 29,4% dos votos -, Trump assegurou que a ajuda financeira podia ser retirada num cenário em que o partido do presidente argentino não fosse o vencedor do ato eleitoral. Para José Filipe Pinto, é mais uma prova de que Donald Trump “acabou por condicionar muito as eleições argentinas”.
Para Raquel Patrício, especialista em assuntos da América Latina e professora no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) da Universidade de Lisboa, o empréstimo do líder americano não passa de uma “máscara” que serve para esconder um apoio que na realidade é “estritamente político”. “O apoio que Donald Trump dá a nível financeiro a Javier Milei não tem que ver com a economia, é uma forma de mascarar um apoio político porque Milei compõe – com Trump e Bukele, presidente de El Salvador – um eixo de direita muito forte que Trump pretende que tenha grande influência na América Latina.”
Para José Filipe Pinto, este apoio representa apenas parte do plano de Donald Trump. “É evidente que Donald Trump já está a recuperar aquela ideia – que foi a ideia de Steve Bannon – de tentar formar uma internacional populista conotada com a direita radical.”
O politólogo considera que estamos perante um “embrião” que pode evoluir para uma internacional populista cultural-identitária: “Nós percebemos que há um crescimento do populismo cultural-identitário um pouco por toda a Europa e está a haver uma ligação aos principais partidos europeus, mas também sul-americanos, que têm uma posição política muito próxima daquela que é defendida por Donald Trump.”
Raquel Patrício vai mais longe: diz que a administração norte-americana trata o continente sul-americano como um “quintal dos Estados Unidos”. “Enquanto Trump estiver na presidência vai comportar-se com a América Latina de acordo com a doutrina de Monroe, que a vê como o seu quintal, e, por isso, aquilo é um espaço reservado à esfera de influência norte-americana.”

José Filipe Pinto acredita que “aquilo a que estamos a assistir é a uma tentativa de Trump impor um novo modelo, um novo sistema”, através de medidas que visam “o lucro e a imposição de uma ideologia nova, que vai além do liberalismo e que se aproxima um pouco do libertarismo”, sublinha. “Num primeiro mandato Trump foi um produto do sistema, no segundo mandato está a construir um sistema.” Um que, aos olhos do politólogo, vem substituir a democracia representativa pela democracia “a caminhar para a iliberal”.
Raquel Patrício não tem dúvidas de que o apoio financeiro prestado pelos Estados Unidos pode ter influenciado o processo eleitoral, já que “receber verbas num país em que a economia ainda está debilitada pode ser benéfico e essa pode ser uma chantagem a que a própria população está disposta a ceder”.
Depois de conhecidos os resultados, Javier Milei falou em “dia histórico” para o país. “A partir de 10 de dezembro teremos, sem dúvida, o Congresso mais reformista da história da Argentina” – e agradeceu “a todos os que apoiam as ideias da liberdade para tornar a Argentina grande”, que é uma expressão herdeira do Make America Great Again.
Javier Milei saiu com uma posição reforçada das últimas eleições legislativas intercalares: o seu partido, La Libertad Avanza (LLA), venceu. Mas os resultados “não podem ser dissociados daquilo que foi a posição pública de Donald Trump”, conclui José Filipe Pinto.