Apesar da tática inédita, que resultou na operação mais mortífera da história do Brasil, o principal líder do Comando Vermelho conseguiu furar o cerco e escapar

Ainda o número de mortos ia a metade e já era considerada a operação policial mais mortífera da história do Brasil. Com o nome de código “Contenção”, mais de 2.500 polícias civis e militares cercaram e combateram uma das maiores fações criminosas da América Latina no seu próprio território. Apesar do rasto de morte e destruição – 132 pessoas perderam a vida até ao momento – o principal alvo da operação conseguiu escapar às autoridades.

A megaoperação foi conduzida pela polícia civil e militar do Rio de Janeiro com foco em duas favelas controladas pela organização criminosa Comando Vermelho, o Complexo do Alemão e o Complexo da Penha, na região norte da cidade. Mais de 2.500 polícias participaram na operação, que resultou de mais de um ano de investigação criminal, mas que foi planeada “de um dia para o outro”, ao contrário de operações anteriores, como a de 2010, que contou com o apoio das Forças Armadas. Esse facto pode ter sido crucial para as autoridades conseguirem alcançar o efeito surpresa.

“Hoje é muito difícil ter o fator surpresa, os traficantes têm câmaras a controlar todas as entradas da favela e drones a sobrevoar 24 horas por dia. O fator surpresa é impossível”, explica à CNN Portugal o coronel Fernando G. Montenegro.

De acordo com a Secretaria de Segurança Pública, o objetivo principal era combater a expansão territorial do grupo criminoso e cumprir 100 mandados de captura contra membros e lideranças do Comando Vermelho. Entre os alvos, 30 seriam membros da fação oriundos de outros estados, com destaque para o Pará, que estariam escondidos nessas comunidades. O resultado foi o maior número de mortos numa operação policial da história do país, ultrapassando o massacre da prisão de Carandiru, quando um grupo de presos fez um motim, em 1992.

Entre os mortos da operação policial contra o Comando Vermelho estão quatro polícias, entre os quais dois membros do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE). A maior parte dos 128 mortos fora das autoridades foi encontrada numa região de mata, no topo do Complexo da Penha, onde a polícia terá feito uma emboscada a um elevado número de criminosos.

Além das elevadas baixas, a polícia prendeu 113 pessoas, além de 10 menores, incluindo 33 suspeitos de outros estados. O número de armas apreendidas também surpreendeu, com 91 metralhadoras, 26 pistolas, um revólver e 14 engenhos explosivos a serem encontrados pelas autoridades. 

O elevado número de vítimas deve-se a uma estratégia montada pelas forças de segurança que as próprias apelidaram de “Muro do BOPE”. A estratégia passava por afastar os membros do grupo o mais longe possível das áreas populadas, empurrando rapidamente o grupo para o topo do complexo, em direção à área da mata, que era a rota de fuga dos criminosos. No meio das árvores estavam polícias do BOPE, que dispararam contra todos os que tentaram escapar. Moradores do Complexo da Penha alegam ter encontrado 71 corpos na área.

Imagens dos drones da polícia mostram um elevado número de criminosos a escapar em direção à mata, vestidos com uniformes camuflados e uma grande quantidade de armamento. 

O secretário de Segurança Pública, Victor Santos, afirma que a operação foi um sucesso, uma vez que conseguiu ter um “dano colateral muito pequeno”, com poucos civis a serem mortos ou feridos. “As vítimas são os quatro inocentes que foram baleados e os quatro polícias que morreram”, disse.

Mas o principal objetivo da operação escapou. A polícia esperava capturar Edgar Alves de Andrade, o Doca da Penha, o principal líder do Comando Vermelho. Também conhecido por Urso, o traficante, que domina uma região composta por 13 favelas, é investigado por 329 crimes, dos quais 112 são homicídios. Sobre ele caem ainda suspeitas de tráfico de droga, organização criminosa, tortura, extorsão, corrupção de menores e ocultação de cadáver. No total, tem 34 mandados de prisão e uma recompensa por informações de 100 mil reais (cerca de 16 mil euros). O traficante foi capaz de escapar do Complexo da Penha escoltado por um grupo de 70 criminosos. 

Juntamente com alguns homens de confiança, Doca chefiava o infame “Tribunal do Tráfico”, responsável pela execução de civis e rivais da fação criminosa, um pouco por toda a cidade. Apesar de Doca ter conseguido escapar, o seu braço direito não teve a mesma sorte. A polícia brasileira conseguiu capturar Thiago do Nascimento Mendes, mais conhecido como Belão, um dos principais chefes do Comando Vermelho, que é considerado o principal operador financeiro do grupo no Complexo da Penha.

“A prioridade tem de ser desmantelar o poderio económico que o sustenta”, justificou o secretário de segurança do Rio de Janeiro. “Porque quando focamos no líder e ele é preso ou morto, no dia seguinte surge um número dois e a vida continua, queremos é tirar as receitas deles e não criar um símbolo de criminalidade”.   

O Comando Vermelho é um dos mais antigos grupos criminosos brasileiros. Foi criado no interior de uma prisão, durante a ditadura militar, na década de 70, com o objeitvo de combater a tortura e os maus tratos sofridos pelos presos. Mas o grupo rapidamente se expandiu para fora dos estabelecimentos prisionais e descobriu no tráfico de cocaína uma importante fonte de receitas.

Hoje a fação tem características que se assemelham a conhecidos esquemas de mafiosos, devido ao domínio da cadeia de produção da maioria das atividades ilegais em que atua. As principais fontes de rendimento do grupo são o tráfico de droga, mas, recentemente, o Comando Vermelho tem vindo a encontrar formas diferentes de obter rendimentos. Em particular, a fação criminosa ficou conhecida pelo “controlo territorial armado”, no qual obriga os moradores das áreas que controla a optar por serviços e fornecedores escolhidos pelo grupo. 

Um estudo feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em fevereiro de 2025 revelou que o tráfico de cocaína já não é a atividade que mais dá dinheiro para o crime organizado no Brasil. A investigação aponta que atividades como a venda irregular de combustível, ouro, cigarros e álcool são mais lucrativas. 

Esta “ultracapitalização” das fações criminosas é vista pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Flávio Dino, como a raiz do caos no Rio de Janeiro. “Foi-se o tempo em que as fações criminosas no Brasil viviam apenas de mercado ilegal”, afirmou Dino, que as classifica hoje como “grandes operadoras de garimpo, no mercado imobiliário e de combustível”.

Este poder financeiro permite a infiltração no Estado, um problema que, segundo o coronel Fernando G. Montenegro, transforma o território da fação num “enclave de micro-soberania” – um mini-país que defende a sua autonomia. O coronel aponta o dedo à fragilidade do sistema: “O Rio de Janeiro tem a polícia que mais prende, mas tem a justiça que mais solta. Existem sete desembargadores investigados pela venda de sentenças.”