Há duas teorias e supercomputadores à procura de uma resposta

No centro da nossa galáxia, há um brilho misterioso e difuso emitido por raios gama – radiação poderosa geralmente emitida por objetos de alta energia, como estrelas em rápida rotação ou em explosão.

O Telescópio Espacial de Raios Gama Fermi da NASA detectou o brilho logo após o seu lançamento em 2008, e a luz tem intrigado os cientistas desde então, levando a especulações sobre a sua causa.

Alguns astrónomos acreditam que a fonte do brilho podem ser pulsares – os restos giratórios de estrelas que explodiram -, enquanto outros apontam para a hipótese de partículas de matéria escura, uma forma elusiva e invisível de matéria que se acredita ser cinco vezes mais abundante do que a matéria normal, a colidir umas com as outras.

Muitos estudos anteriores encontraram suporte para ambas as ideias, mas parecia haver um problema com a teoria da matéria escura: o brilho de raios gama parecia corresponder à forma do bojo galáctico – uma região aglomerada e bulbosa no centro da Via Láctea, composta principalmente por estrelas antigas, incluindo pulsares. Essa observação parecia apoiar a teoria dos pulsares, com especialistas a teorizar que o brilho teria assumido uma forma mais esférica se a sua fonte fosse a matéria escura. No entanto, os astrónomos não conseguiram observar pulsares suficientes que produzissem os raios gama para fazer uma avaliação conclusiva.

Agora, novas simulações feitas com supercomputadores mostram pela primeira vez que colisões de matéria escura também poderiam ter criado o brilho em forma de protuberância, dando mais peso à teoria da matéria escura.

“Estamos numa situação em que temos duas teorias, uma defendendo a matéria escura e alegando que ela poderia explicar os dados que vemos, e outra defendendo as estrelas antigas”, diz Joseph Silk, professor de física e astronomia da Universidade Johns Hopkins e coautor de um estudo que detalha as novas descobertas, publicado na quinta-feira na revista Physical Review Letters.

“Há 50% de probabilidade de que seja matéria escura neste momento, em oposição à explicação um pouco mais mundana das estrelas antigas, na minha opinião.”

O brilho de raios gama pode ser visto claramente nesta imagem, obtida de dados recolhidos pelo telescópio Fermi da NASA, a par do centro do mapa, que marca o plano central da nossa galáxia, a Via Láctea. foto NASA/DOE/Fermi LAT Collaboration

A evidência da matéria escura seria uma descoberta revolucionária. O astrónomo suíço Fritz Zwicky foi o primeiro a teorizar a existência da matéria escura na década de 1930, e os astrónomos americanos Vera Rubin e W. Kent Ford confirmaram-na na década de 1970. Eles notaram que as estrelas que orbitavam na borda das galáxias espirais se moviam muito rapidamente para serem mantidas juntas apenas pela matéria visível e pela gravidade, e postularam que havia uma grande quantidade invisível de matéria impedindo-as de se separarem. Apesar de décadas de esforços, os cientistas nunca observaram diretamente a misteriosa substância, daí o seu nome.

Vera Rubin descobriu nos anos 1970 que a maioria do nosso universo é composto por matéria escura. foto The Washington Times/Shutterstock

“Não há dúvida de que a natureza da matéria escura é um dos principais problemas pendentes da física”, disse Silk. “É algo que está em toda parte — perto de nós, longe de nós, e simplesmente não sabemos o que é.”

À caça de WIMPs

Existem muitas hipóteses sobre o que poderia ser a matéria escura, incluindo vestígios de buracos negros primordiais ou um tipo de partícula ainda não descoberto. Grande parte dos esforços para encontrar a matéria escura tem-se centrado na última ideia, levando à construção de detetores como o LZ Dark Matter Experiment, em Dakota do Sul.

O instrumento foi projetado para detectar um dos principais candidatos à matéria escura, partículas hipotéticas chamadas WIMPs – Partículas Massivas de Interação Fraca – que não absorvem luz e podem passar pela matéria normal quase sem obstáculos. Os cientistas acreditam que, quando duas WIMPs se encontram, elas se aniquilam mutuamente e produzem raios gama, o que as tornaria uma fonte plausível do brilho.

O estudo de Silk utilizou supercomputadores para criar um mapa de onde a matéria escura deveria estar na Via Láctea, levando em consideração como a galáxia se formou originalmente.

“O problema era que todos os modelos dos últimos 20 anos sobre a matéria escura em nossa galáxia assumem que ela é basicamente como uma bola esférica. Ela não tem forma, porque esse era o modelo mais simples”, disse Silk.

“A nossa contribuição foi, pela primeira vez, fazer uma simulação real em computador da distribuição da matéria escura. E, vejam só, descobrimos que a parte central da matéria escura, onde os raios gama seriam emitidos, era, na verdade, achatada — mais parecida com a forma de um ovo.” Essa forma achatada é muito semelhante aos dados do telescópio Fermi, explica Silk.

O Telescópio Espacial Fermi de Raios Gama da NASA, mostrado aqui, varre todo o céu a cada três horas enquanto orbita a Terra. foto Centro de Voo Espacial Goddard da NASA(USRA/GESTAR)​​​​​/Chris Smith

Felizmente, a confirmação da ligação entre a matéria escura e o brilho pode não estar muito longe. Um novo instrumento, o Observatório Cherenkov Telescope Array, ou CTAO, está em construção em dois locais – um no Chile e outro na Espanha – e começará a fornecer dados já em 2027. O CTAO detectará raios gama com uma resolução muito maior do que o Fermi, disse Silk, tornando possível determinar se os raios gama no centro da Via Láctea são o produto de colisões de matéria escura.

Essa descoberta seria um avanço na busca por essa substância elusiva, acrescentou ele, além de oferecer provas de que pelo menos parte da matéria escura é composta por WIMPs. Se, ao contrário, o CTAO não associar o brilho à matéria escura, os cientistas voltariam à estaca zero na busca, com todas as opções ainda em aberto.

Um segredo fundamental

O estudo ajuda a reabrir a possibilidade de que a matéria escura possa explicar o brilho no centro da nossa galáxia, embora não forneça novas evidências positivas a favor da matéria escura, diz Tracy Slatyer, professora de física do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, que não participou do estudo. No entanto, ela não está convencida de que haja uma correspondência definitiva entre a forma da distribuição da matéria escura e o bojo estelar. “Eu achava que a hipótese da matéria escura ainda era razoável mesmo antes deste estudo”, acrescenta.

Este trabalho é mais um apoio ao esforço internacional para continuar a impulsionar a busca por WIMPs, de acordo com Chamkaur Ghag, professor de física e astronomia da University College London, que também não participou na investigação de Silk. “Elas continuam a ser a solução mais elegante para o antigo problema da matéria escura”, adianta Ghag por e-mail, observando que, com ainda mais detetores de WIMPs em desenvolvimento, ver sinais dessas partículas a aniquilar-se no espaço significaria resolver o quebra-cabeças da matéria escura, que já dura quase um século.

O detetor central da Experiência de Matéria Escura LZ, localizado no Centro de Pesquisa Subterrânea de Sanford, em Dakota do Sul, visto aqui antes de ter sido colocado no subsolo. foto Matthew Kapust/Centro de Pesquisa Subterrânea de Sanford/Laboratório Nacional Lawrence Livermore

Nico Cappelluti, professor associado do departamento de física da Universidade de Miami, refere que o telescópio Fermi marcou uma viragem de jogo para a NASA, e este artigo mostra que a matéria escura ainda está muito presente na corrida para explicar o estranho brilho no centro da nossa galáxia. “Esse mistério continua vivo, e é do tipo que mantém cientistas como eu acordados à noite”, diz Cappelluti, que não participou no estudo.

Descobrir o que é a matéria escura tem sido a busca científica do nosso século, acrescenta ele, observando que “as WIMPs, essas partículas hipotéticas, têm sido as nossas principais suspeitas há anos”. O facto de as experiências na Terra ainda não as terem capturado é frustrante, adianta.

“Mas o Fermi dá-nos um motivo para continuar a acreditar. Este artigo lembra-nos de não riscar as WIMPs da lista por ora — elas ainda podem estar a iluminar o centro da nossa galáxia”, diz Cappelluti. “E se isso for verdade, estamos mais perto do que nunca de descobrir um segredo fundamental do universo.”